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Lula no deserto

A volta do Brasil ao debate mundial é a única boa notícia da primeira semana da conferência do clima no Egito

Lula no deserto
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Proximidade. Kerry prometeu a Lula que os Estados Unidos vão analisar o ingresso no Fundo Amazônia, ao lado da Alemanha e Dinamarca - Imagem: Ricardo Stuckert e A. Hillert/LWF
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Apelidada pela própria ONU de “COP da Implementação”, por ter diante de si a tarefa de tornar reais acordos firmados há anos, alguns há décadas, mas nunca postos em prática, a 27ª Conferência do Clima encerrou sua primeira semana na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh sob o mais completo imobilismo. Primeiro dia da Rodada Ministerial, segunda e decisiva etapa da COP-27, a quinta-feira 17 começou sem que fossem apresentadas soluções para os dois principais problemas colocados à mesa de negociação. Um deles é viabilizar o Fundo do Clima, que deveria ter angariado 100 bilhões de dólares por ano desde 2020, mas reúne até agora menos de um terço do que foi estipulado pelos países ricos, seus doadores. O outro é como e a partir de qual momento indenizar as nações mais vulneráveis ao aquecimento global.

A conferência sofre com a emblemática ausência de líderes dos países que mais emitem gases de efeito estufa. É o caso de Xi Jinping, presidente da China, que sozinha responde por 27% das emissões mundiais. Outro ausente é o presidente russo Vladimir Putin, acossado diplomaticamente desde a invasão da Ucrânia e no centro da crise energética europeia. Também integrantes do pódio do aquecimento, os Estados Unidos se fizeram representar pelo enviado especial da Casa Branca, John Kerry, que buscou suprir a lacuna deixada por seu presidente. Joe Biden esteve no Egito, mas permaneceu na COP apenas por algumas horas e fez um discurso de exatos 20 minutos, repleto de citações vagas a iniciativas de seu governo. “A primeira semana da Conferência não produziu praticamente nada no que diz respeito aos assuntos que deveriam andar”, lamenta Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

A COP-27 está marcada pela ausência de outros líderes globais

Em seu discurso oficial, Kerry avisou ao mundo não haver recursos para dotar o Fundo do Clima agora. “Hoje, nenhum país tem trilhões para gastar”, resumiu. Biden, por sua vez, prometeu “regular agressivamente” as emissões de metano, gás gerado em boa parte pela pecuária, em seu país. “Cortar as emissões de metano em 30% até 2030 é a melhor chance que o planeta tem para limitar o aumento da temperatura em 1,5 grau até o fim deste século”, disse o mandatário norte-americano. Ele deixou de lado temas mais urgentes e espinhosos, entre eles a redução do uso de combustíveis fósseis nos EUA e em todo o mundo. Para Astrini, a discussão sobre o Fundo do Clima retrocedeu: “O dinheiro continua não aparecendo em cima da mesa e agora os EUA, principal doador, falaram que é cada um por si e que o mercado é que tem de encontrar solução com a venda de créditos de carbono e outros investimentos. Isso é terrível, uma promessa que não foi cumprida até agora e que todo mundo se pergunta quando isso acontecerá”.

No Egito, com três décadas de atraso, a ONU finalmente incluiu na agenda climática oficial a discussão sobre o pagamento de indenizações por perdas e danos às nações que sofrem os efeitos catastróficos do aquecimento global, tema debatido desde a Rio-92. A medida é considerada insuficiente e os últimos dias da conferência serão de pressão por parte dos ambientalistas: “Esta ‘COP da Implementação’ não pode deixar de estabelecer um fundo ou outro mecanismo claro para cobrir as perdas e danos. Com a desculpa dos problemas internacionais, os países industrializados tentam adiar o tema para 2024”, afirma Rubens Born, dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs pelo Meio Ambiente.

Ribalta. A comitiva de Lula no Egito mostra a cara do futuro do País – Imagem: Redes sociais

Testemunha das negociações climáticas nestes 30 anos, Born lamenta que no Egito se dê mais do mesmo: “Desde antes da Rio-92, o nome do filme repetido é ‘Quem Paga a Conta?’ É preciso saber quem paga a conta da degradação resultante das mudanças do clima e do modelo de desenvolvimento perverso, desequilibrado, não equitativo e insustentável”. O ambientalista lembra que a discussão sobre o Fundo do Clima se arrasta desde a COP-15, realizada em 2009 na Dinamarca: “A promessa de mobilizar 100 bilhões de dólares ao ano para apoiar os países em desenvolvimento vem desde então. Mas como se chegar a esse montante ficou em aberto. Não necessariamente é dinheiro novo, não necessariamente é financiamento. Então, os países desenvolvidos podem colocar na conta o que quiserem”.

Nem tudo é desânimo na COP-27. A volta do Brasil à agenda climática e a presença de Lula mobilizaram boa parte dos delegados de diversos países que queriam ouvir as propostas do futuro presidente e de integrantes do governo de transição para o enfrentamento da crise global. Na quarta-feira 16, durante encontro com o secretário-geral da ONU, o português António Guterrez, o petista lançou a candidatura do País a sede da COP-30, em 2025: “O Amazonas ou o Pará podem receber a COP”, ofereceu. Mais cedo, em evento organizado pelos governadores da Amazônia, o presidente eleito defendeu a exploração sustentável da floresta: “Se a Amazônia tem o significado que tem para o planeta Terra, não devemos ter problemas para convencer que uma floresta viva de pé vale mais do que uma derrubada. Para a gente acabar com o processo de degradação que nossas florestas estão passando vamos ter de trabalhar muito”.

Os EUA dizem não ter dinheiro para compensar os países mais afetados pelas mudanças climáticas

Lula repetiu aos seus interlocutores que “o Brasil está de volta ao mundo”. Não foram só palavras. O petista manteve encontros bilaterais com representantes dos governos da China, da Alemanha e dos EUA, entre outros. Ao sair da conversa com o brasileiro, John Kerry se disse satisfeito: “Fiquei feliz em encontrar com Lula e animado pela forma como ele falou que vai enfrentar de uma vez por todas o problema da preservação da Amazônia”. Durante o encontro, o norte-americano afirmou que seu país estuda integrar o Fundo Amazônia, hoje financiado por doações de Noruega e Alemanha.

Outro nome do futuro governo brasileiro muito festejado em ­Sharm el-­Sheikh foi a ex-ministra Marina Silva, também convidada para diversas conversas bilaterais. “Teremos quatro anos para consolidar esse movimento de legítima defesa do meio ambiente no Brasil. É preciso trabalhar com o espírito de frente ampla”, repete nas conversas e com quem pede fotos a seu lado na conferência realizada às margens do Mar Vermelho. •


“LULA É UMA DAS VOZES DE BOM SENSO”

A ex-ministra Izabella Teixeira celebra a volta do Brasil à cena mundial

Eixo. As soluções para o mundo virão dos países do Sul, diz a ex-ministra – Imagem: Alberto Rocha/FolhapressReconhecida internacionalmente por sua atuação na presidência do Painel de Recursos Naturais da ONU, a brasileira Izabella Teixeira cumpre agenda intensa na COP-27. Entre uma sala de negociação e outra, a ex-ministra de Lula e Dilma Rousseff, que nos últimos anos foi voz ativa contra a destruição ambiental capitaneada por Jair Bolsonaro, é inúmeras vezes parada por colegas estrangeiros que querem cumprimentá-la pelo resultado das eleições no Brasil. Em conversa com ­CartaCapital, Teixeira fala sobre as expectativas globais em relação ao País.

Celebração na COP
Há uma celebração. Todas as delegações nos dão parabéns por “a democracia do Brasil ter sobrevivido”. A vinda do presidente Lula é simbólica, pois o mundo está carente de líderes e ele tem um ativo político inquestionável. É um líder global que fez muita coisa e que volta em um contexto importante de tensões de curto prazo no mundo todo. Lula é uma das vozes de bom senso, com capacidade de liderança e de construir convergências, de juntar e não dividir.

Voz do Brasil
Em um mundo cada vez mais ameaçado e que enfrenta guerras, é importante a voz de um país que há mais de 150 anos tem suas fronteiras consolidadas e em paz com seus vizinhos, que tem relações internacionais com todos os países do mundo. O Brasil mobiliza esperanças e traz soluções e é preciso somente ter determinação e convicção de que vamos construir novos caminhos que não vão permitir nos levar no futuro a retrocessos. Nós mesmos, brasileiros, não temos a dimensão da destruição causada pelo atual governo, mas o mundo tem a intenção de apoiar o Brasil nesta nova trajetória.

Sul-Sul
A cooperação Sul-Sul vai conferir ao Brasil a capacidade­ de trabalhar mais próximo e de maneira mais articulada com parceiros e vizinhos. Não é só na Amazônia e na­ ­Bacia do Prata, acho que é importante para a hegemonia das Américas. Três quartos da população do mundo estão do lado asiático. A ordem global mudou e uma nova dinâmica dos fluxos financeiros e de seres humanos toma conta de um mundo que tem 8 bilhões de habitantes e em breve chegará a 10 bilhões. Muitas das soluções para o mundo virão dos países do Sul, daí a importância de nos unirmos em torno de uma ambição de desenvolvimento alinhada a uma perspectiva contemporânea da convergência da era climática com a era digital e tecnológica.

Agendas
É preciso ter a capacidade de conectar agendas. Tem de cuidar do clima, mas também tratar da pobreza e da fome. É preciso avançar de maneira muito significativa nas soluções de problemas, sem margem para retrocessos no futuro. Para isso, teremos de nos dar as mãos, sermos solidários e entender que em meio às especificidades do mundo é possível construir convergências e caminhos para soluções compartilhadas. Este é um desafio para o Brasil, a começar por uma nova relação com a América Latina. Temos de buscar soluções com os nossos vizinhos e compartilhar estas soluções com o resto do mundo.

Papel global
O Brasil é um país que tem alternativas, singularidades como a Amazônia, e precisa lidar com o tempo de uma maneira diferente. É um país que tem de construir agora as bases para estar melhor no futuro. Essa visão estratégica precisa estar na ambição de se relacionar com o mundo e também discutir o seu papel neste mundo. São coisas distintas, e isso certamente passa pela capacidade de o Brasil cooperar mais com os países em desenvolvimento, além dos desenvolvidos.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lula no deserto “

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