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O voto do ódio

Os extremistas colonos de Hebron ganham espaço na política israelense com a volta de Netanyahu

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Aliança. Para escapar da Justiça e voltar ao poder, Netanyahu abrigou na coalizão os partidos de extrema-direita - Imagem: Tânia Rêgo/ABR e Menahen Kahana/AFP
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Em 1968, um ano após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias, marco do início da ocupação dos territórios palestinos, cerca de 60 judeus messiânicos que se fingiam de turistas suíços viajaram até um hotel na cidade sagrada de Hebron, na Cisjordânia, onde celebraram um Sêder de Pessach. Mais tarde, o grupo visitou a Caverna dos Patriarcas, conhecida pelos muçulmanos como Mesquita al-Ibrahimi, onde supostamente estão enterrados Abraão e seus parentes. Eles nunca foram embora. A viagem agora é amplamente vista como o nascimento do movimento moderno de colonos, para os quais a restauração da terra histórica de Israel é um chamado religioso que vai acelerar a vinda do Messias.

Hebron é hoje uma notável manifestação do que essa visão significa para a população palestina. Os cerca de 30 mil palestinos que vivem na parte da cidade sob controle israelense não têm permissão sequer para andar em certas ruas, enquanto perto de 800 colonos israelenses, sob a proteção das Forças de Defesa de ­Israel, ocuparam frequentemente casas e empresas palestinas desde a década de 1990.

Em um dia frio e úmido, soldados em postos de controle e um grupo de meninos judeus chapinhando em poças eram os únicos sinais de vida no que costumava ser um próspero centro econômico. A cidade dividida tem sido um ímã para seguidores do terrorista antiárabe rabino Meir Kahane, banido da política antes de ser assassinado em 1990. Em 1994, um integrante de seu movimento Kach entrou na mesquita Al-Ibrahimi e matou 29 muçulmanos durante a oração. O perpetrador está enterrado no assentamento vizinho de Kiryat Arba, e seu túmulo tornou-se um santuário de fato.

Três décadas depois, o kahanismo não apenas sobreviveu: após a eleição em Israel neste mês, tornou-se a terceira maior força política do país, e os políticos kahanistas terão pastas importantes no novo governo do ex-primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Um total de 88% da comunidade judaica em Hebron e 67% dos 3 mil moradores de Kiryat Arba votaram em um deles: Itamar Ben-Gvir, residente de Kiryat Arba, ex-discípulo de Kahane e estrela em ascensão do partido Sionista Religioso. “Não sou religiosa. Não cubro meu cabelo nem nada, tenho amigos LGBT”, disse Elinor, mãe solo de 24 anos que trabalha no supermercado em Kiryat Arba. “Como todo mundo, votei em Netanyahu no passado e mudei para Ben-Gvir desta vez, por causa da situação de segurança. Acho que ele se tornou tão popular porque o resto do país começa a entender como está perigoso e o que passamos aqui.”

O bloco de partidos religiosos e de extrema-direita de Netanyahu conquistou a maioria em 1º de novembro, e ele provavelmente retornará ao cargo em algumas semanas à frente do governo mais direitista da história de Israel. Netanyahu conseguiu acabar com a crise política de quatro anos, provocada por seu julgamento por corrupção, ainda em andamento, ao persuadir três partidos de extrema-direita a se fundirem em uma lista chamada Sionistas Religiosos antes da eleição de 2021, empurrando-os para além do limiar eleitoral e para o Parlamento, o Knesset.

Os herdeiros do kahanismo defendem restrições aos direitos civis, leis religiosas e mais opressão aos palestinos

Desta vez, a crescente popularidade de Ben-Gvir permitiu à chapa mais que dobrar seus assentos, para 14. Seis deles são colonos da Cisjordânia, apesar do fato de ser ilegal sob a lei internacional e de os assentamentos israelenses, que não param de crescer, negarem a ­possibilidade de uma solução de dois Estados.

Os discursos inflamados de Ben-Gvir a favor da imunidade para a polícia e soldados israelenses que ferem palestinos, o restabelecimento da pena de morte para crimes de terrorismo e a deportação de cidadãos “desleais” tiveram ressonância durante um ciclo eleitoral marcado por uma espiral de violência. Um total de 21 israelenses e 121 palestinos em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia foram mortos até agora em 2022, recorde de 16 anos.

Ex-integrante do grupo terrorista­ ­Kach, condenado por incitar o racismo, Ben-Gvir apoia a alteração do código legal de Israel, o que poderia favorecer ­Netanyahu em seu julgamento por corrupção. Outros participantes da chapa também querem o fim da autonomia palestina em áreas da Cisjordânia, uma reforma legislativa para incorporar a lei religiosa tradicional e uma reversão dos direitos dos homossexuais. A negociação política da coalizão está em curso e Ben-Gvir faz lobby para ser ministro da Segurança Pública, papel que o colocaria no comando da polícia. Os serviços de segurança de Israel estariam então na posição extraordinária de serem solicitados a compartilhar informações com um indivíduo que está em sua lista de vigiados.

Muitos observadores políticos pensaram que, como parte dos esforços recentes para abrandar sua imagem, Ben-Gvir ficaria longe de um serviço memorial em Jerusalém na noite da quinta-feira 10, aniversário da morte do rabino ­Kahane. Em vez disso, ele chegou para entregar um tributo brilhante. “Acho que a principal característica de Kahane era o amor. Amor a Israel sem condições e sem quaisquer outras considerações”, disse.

No passado, as reuniões kahanistas tinham a aura de clandestinas. Agora, encorajados por seu sucesso na corrente dominante, a mídia foi convidada e o público até vaiou quando Ben-Gvir disse que “não apoia a expulsão de todos os árabes”. Para os 20% da população israelense que se identificam como palestinos, bem como para aqueles que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, a elevação da extrema-direita a importante parceiro de coalizão do governo no ­Knesset significa que uma situação difícil está prestes a ficar bem pior.

Issa Amro, ativista palestino de direitos humanos em Hebron, conhece Ben-Gvir e seus apoiadores. Amro é alvo da violência dos colonos há anos. Na última quinzena, a pressão foi, no entanto, implacável. Bandos de jovens e meninos judeus incendiaram suas terras e atacaram amigos e familiares que vieram para a colheita de azeitonas. Em imagens de vídeo de vários desses incidentes, a FDI está imóvel, permitindo que a violência continue. “Acho que eles estão definitivamente mais confiantes agora. Seus representantes são o governo. Eles não acham que precisam se conter mais”, disse o ativista.

Depois da reclamação de Amro, o exército israelense declarou sua casa uma zona militar fechada e proibiu qualquer um, exceto ele, de entrar na propriedade, no que ele diz ser uma tentativa transparente de torná-lo isolado e vulnerável. Solicitada a comentar, a FDI disse: “Na terça-feira, 1º de novembro, após vários confrontos na área, foi decidido declarar temporariamente a área como zona militar fechada. O pedido era válido por apenas um dia e não foi prorrogado”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O voto do ódio “

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