Mundo

assine e leia

De tsunami a marola

A enorme vantagem republicana não se confirma nas eleições de meio de mandato, uma péssima notícia para Donald Trump

De tsunami a marola
De tsunami a marola
Mudança de tom. Trump dizia que o pleito seria “crucial“ para o futuro do país. Após ver o resultado das urnas, agora afirma que a disputa é “superestimada“ - Imagem: Dustin Franz/AFP e Gage Skidmore
Apoie Siga-nos no

Em eleições conturbadas, resultados inesperados também precisam fazer parte dos cálculos políticos. Na última terça-feira 8, os cidadãos norte-americanos voltaram às urnas, desta vez para renovar parte do Legislativo, além de eleger alguns governadores. Mas o alardeado tsunami republicano, que prometia varrer os democratas do Congresso dos EUA, acabou se mostrando uma marolinha. Na noite de quarta-feira 9, o cenário ainda dava à oposição de Joe Biden alguma vantagem na Câmara (206 contra 181), enquanto a disputa no Senado seguia acirradíssima, com os democratas e republicanos empatados (48×48). A indefinição em estados decisivos como Arizona, ­Geórgia e Nevada, indica, porém, que o resultado final pode levar dias para ser conhecido. No caso do Senado, até um mês.

Se a atual conjuntura permanecer, os próximos dois anos não serão fáceis para a administração Biden, mas, diante das previsões de uma derrota avassaladora nas midterm elections, o Partido Democrata tem razões para celebrar. Não somente pelo resultado, mas por tudo o que as eleições deste ano representaram para a democracia dos EUA. Apontada por especialistas como a mais tóxica dos últimos tempos, restou evidente que, mais do que os cargos em disputa, a eleição de 2022 reverbera o acirramento entre as bases democratas e republicanas.

A resposta das urnas será, portanto, não somente uma avaliação dos dois anos de mandato de Biden até agora, mas sobretudo uma sinalização das chances que Donald Trump tem de retornar à Casa Branca em 2024. Escândalos, retóricas do terror e acusações delirantes chamaram mais a atenção do eleitor nos últimos meses do que propostas ou planos de governo. A tática suja vem sendo aperfeiçoada desde 2016. Trata-se de um jogo que os democratas ainda não aprenderam como se vence ou, ao menos, como se neutraliza o oponente. Por isso mesmo, correm sério risco de serem arrastados esgoto abaixo, levando consigo a democracia.

O ex-presidente sonha em retornar à Casa Branca, mas a candidatura ainda é alvo de disputa em seu partido

Em artigo publicado na revista The American Prospect, o pesquisador Stanley Greenberg observa que a cúpula democrata não é capaz de entender o que sua base diversificada de eleitores da classe trabalhadora realmente deseja. “As eleições de 2022 serão lembradas como uma campanha tóxica, mas eficaz em rotular os democratas como pró-crime”, escreveu. Dados da Greenberg Research, levantamento publicado da primeira semana de novembro, revelam os principais temores dos norte-americanos caso os democratas conquistem o controle total do governo. Dentre os eleitores entrevistados, 56% disseram ter receio de um aumento da criminalidade e da falta de moradia. Outros 43% elegeram “a fronteira Sul aberta aos imigrantes” como foco de suas maiores angústias.

Atentos ao terror que assombra os eleitores, os republicanos foram ao ataque. Alguns com discursos tão absurdos que nem mesmo Tucker Carlson, âncora da Fox News, conseguiu processar com naturalidade. Durante uma entrevista em seu programa, o apresentador, conhecido por posicionamentos sensacionalistas, ouviu boquiaberto o candidato republicano JD Vance contar que seu adversário ao Senado em Ohio, o democrata Tim Ryan, estava “inundando a América com estrangeiros ilegais” com intuito de “financiar cirurgias de mudança de gênero para que esses estrangeiros se infiltrassem no Partido Republicano”. Tudo pago, segundo ele, com os dólares de impostos americanos.

Os devaneios não param por aí. Assim como no Brasil, a ala evangélica também é outro grande filão dentro da política norte-americana. Habitualmente simpática às ideias da extrema-direita, ela cai sempre no discurso manjado dos defensores da família e dos bons costumes. Desta vez, o ex-jogador de futebol americano ­Herschel Walker, candidato ao Senado pelo estado da Geórgia, foi quem fisgou o segmento. Por meses, ele atropelou o concorrente democrata Raphael ­Warnock nas pesquisas de intenção de voto, mas viu a vantagem derreter após a ex-esposa acusá-lo de violência doméstica. Cindy ­Grossman afirmou que Walker apontou uma arma para a sua cabeça e ameaçou matá-la em 2005. Nas semanas seguintes, novos escândalos. Outras duas ex-namoradas disseram que o ex-atleta as pressionou a fazer abortos. No início, o republicano tentou negar as acusações. Como as desculpas não colaram, disse que havia se transformado em “um novo homem” e ter se “redimido pela graça de Deus”.

Mudança tênue. O presidente ainda terá de negociar com os republicanos, mas está longe de ser um “pato manco” – Imagem: Camaron Smith/Casa Branca Oficial

Uma justificativa mais do que apropriada em um pleito onde 44% dos americanos acreditam que o governo é controlado por uma “cabala secreta”, segundo recente pesquisa da Benenson Strategy. Mas é a pesquisa do Instituto Gallup da terça 8 que, realmente, assombra os democratas. A aprovação de Biden despencou de 57%, no início do mandato, para 40%. Além disso, 49% dos entrevistados descrevem a saúde da economia como ruim – apenas 14% a avaliam como boa ou excelente.

O Partido Democrata perdeu assentos em todas as eleições de meio de mandato quando o índice de aprovação de seu líder ficou abaixo de 50%. A impopularidade de Biden obrigou-o a se recolher durante a campanha. O presidente subiu nos palanques poucas vezes, a maior parte delas em Washington D.C. Barack ­Obama foi convocado às pressas para arrebanhar eleitores. Os democratas sabem que não é fácil encontrar uma figura carismática como Obama e, por isso, dedicaram especial atenção a John ­Fetterman, que concorre ao Senado pelo estado da Filadélfia. É um dos raríssimos quadros do partido que conseguem falar com a classe trabalhadora branca.

Os 2 metros de altura, a cara de durão e as muitas tatuagens são um estereó­tipo nada convencional dentro da política, ainda assim o ex-prefeito da pequena Braddock, cidade com pouco mais de 2 mil habitantes, despertou a atenção não apenas dos caciques do partido, mas, sobretudo, do eleitor que os democratas tanto precisam reconquistar. Grande defensor da igualdade social e com estilo de “gente como a gente”, ­Fetterman sofreu um derrame em maio e, por conta do problema de saúde, praticamente não fez campanha nos primeiros meses. Ainda assim, desbancava em grande parte das pesquisas de intenção de voto o republicano Dr. Mehmet Oz.

Fetterman, por sinal, foi um dos primeiros nomes que tiveram a vitória confirmada na terça-feira 8. No Senado, também foram eleitos os trumpistas JD ­Vance (Ohio) e Marco Rubio (Flórida). Na Geórgia, o democrata ­Raphael ­Warnock saiu na frente de Herschel Walker, mas a disputa será decidida no segundo turno, em dezembro. ­Como previsto, o republicano Greg Abbott foi reeleito no Texas e Kathy Hochul tornou-se a primeira governadora de Nova York eleita – a democrata havia assumido o posto quando ­Andrew Cuomo renunciou, em 2021, mas agora terá mandato completo.

Biden não terá vida fácil nos próximos anos, mas respirou aliviado após ver o resultado das urnas

Na noite da quarta-feira 9, um Biden otimista concedeu coletiva de imprensa e prometeu bipartidarismo depois que uma onda vermelha – cor associada ao Partido Republicano, e não à esquerda – não aconteceu como previam especialistas. “Os eleitores falaram claramente sobre suas preocupações, incluindo a inflação. Independentemente da contagem final das eleições, estou preparado para trabalhar com os republicanos”, acenou o presidente. Biden sabe que não será fácil. O desenho apresentado até agora mostra que os candidatos eleitos tanto na Câmara como no Senado fazem parte de um grupo extremamente conservador de republicanos, que não estão habituados a ceder muito terreno ao governo democrata.

Na véspera da eleição, Trump antecipou que faria um “grande anúncio” em 15 de novembro – provavelmente, o comunicado de sua terceira candidatura à Presidência. O republicano não quis antecipar o assunto, segundo suas próprias palavras, “para não prejudicar as eleições”, vistas como “cruciais” para o futuro do país. Na quarta-feira 9, o tom era outro. Com os resultados inesperados em mãos, disse ter havido um “superdimensionamento” do pleito, agora não tão relevante como dizia.

O resultado minguado coloca água no chope de Trump e dá ao governador reeleito da Flórida, Ron DeSantis, munição para continuar sonhando em assumir a candidatura republicana em 2024. Ao espectador brasileiro resta a sensação de assistir a uma espécie de remake do filme rodado no Brasil em outubro. De fato, os discursos alucinados e os ataques à democracia não são mais uma exclusividade nativa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De tsunami a marola “

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo