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A raspa do tacho

O governo exaure a empresa para beneficiar investidores. Recolocar a petroleira a serviço do País será o maior desafio de Lula

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Foto: Agência Petrobras
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Escândalo mundial e parte de um golpe econômico em curso, a distribuição recorde de dividendos da Petrobras escancara a importância e a urgência de reconverter a empresa, hoje uma máquina registradora voltada ao enriquecimento dos acionistas privados, grande parte estrangeiros, em um motor potente a serviço do interesse público e do crescimento do País, mostram dados e análises sobre o assunto. A empresa anunciou na quinta-feira 3 a distribuição de mais 43,7 bilhões de reais a acionistas, em duas parcelas, em dezembro e janeiro, totalizando, nos nove primeiros meses, 180 bilhões, acima do lucro líquido total do período, de 145 bilhões, destaca a Federação Única de Petroleiros.

Na quinta-feira 3, o senador Jean-Paul Prates, do PT, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Petrobras, cotado para assumir a presidência da empresa a partir de janeiro, mas não uma unanimidade na equipe de transição, entrou na Justiça Federal contra a distribuição de dividendos. A ação, assinada pelos demais integrantes da frente, denuncia a política de proventos aos acionistas como altamente prejudicial à companhia e ao País.

A justificativa apresentada pela estatal não se sustenta. “A diretoria da Petrobras culpa o endividamento pela venda de ativos lucrativos e estratégicos, mas, no terceiro trimestre deste ano, a dívida líquida da companhia aumentou em 13 bilhões de dólares e todo o lucro foi distribuído a acionistas, quando o padrão mundial é de, no máximo, 25%”, dispara Paulo César Ribeiro Lima, engenheiro aposentado da companhia, ex-consultor do Congresso e Ph.D. na área de petróleo pela Universidade de Cranfield, na Inglaterra. A geração de caixa, diz, apresentou variação negativa de 12,4 bilhões de dólares, na comparação com o trimestre anterior. Além disso, a empresa ainda emitiu títulos da dívida, sem qualquer “justificativa aceitável”.

A distribuição de dividendos chega a 180 bilhões de reais, recorde mundial no setor

Nesse ritmo, alerta Lima, em 2022 a Petrobras terá distribuído 180 bilhões de ­reais em dividendos aos acionistas, na maior parte estrangeiros que negociam na Bolsa de Nova York, o que representa “metade de seu valor de mercado”. A principal bandeira para a defesa da empresa, diz, é a recompra urgente das ADRs (recibos de ações estrangeiras) negociadas em Wall Street, “para que se possa inverter a lógica especulativa e de curtíssimo prazo”. A urgência deve-se ao fato de que a distribuição de dividendos ocorre “em detrimento do investimento, comprometendo a manutenção das reservas, a produção de petróleo e o próprio futuro da empresa”.

Em 2021 e 2022, a Petrobras distribuiu os maiores dividendos da história da companhia e os mais elevados entre as empresas listadas nas Bolsas de Valores, sublinha Felipe Coutinho, vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras. Um processo de dilapidação radical da companhia possibilitou colocar uma fortuna no bolso dos acionistas, ressalta Coutinho. A redução dos investimentos a níveis insuficientes para manter reservas e a produção de petróleo, as vendas de ativos rentáveis, estratégicos e resilientes à queda do preço do petróleo e também a preços conjunturalmente altos possibilitaram o pagamento de dividendos altos e insustentáveis no período. “Os lucros e dividendos distribuídos hoje resultam dos investimentos realizados no passado. É evidente que elevar a distribuição de dividendos, em detrimento dos investimentos, compromete o resultado futuro”, sublinha. Entre 2005 e 2020, a relação entre a média dos dividendos pagos e os investimentos líquidos realizados foi de 12,66%. Entre 2021 e o segundo trimestre de 2022, contudo, alcançou exorbitantes 1.241,36%, cerca de cem vezes mais, sublinha o dirigente da Aepet.

O que se faz no Brasil é vergonhoso. A Petrobras, apesar de ter a menor receita na comparação com as gigantes Exxon Mobil, Shell, Total, Chevron e BP, pagou o maior montante em dividendos. Além disso, foi a petrolífera que realizou o menor investimento líquido, de apenas 11% em relação à média dos demais. A relação entre os dividendos pagos e os investimentos líquidos da Petrobras é 25 vezes superior à mediana praticada pelas concorrentes. O total de dividendos ­anual chegará a quase 180 bilhões de ­reais, o que torna a brasileira a maior empresa pagadora de dividendos do mundo, segundo o Índice Global de Dividendos da gestora Janus Henderson, destacam os dirigentes das sete Centrais Sindicais do País, em nota conjunta sobre o assunto. Com isso, diz a entidade, a petroleira desbanca as 1,2 mil maiores empresas globais por valor de mercado.

Ação. Prates questiona a divisão de lucros – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado

“A antecipação de distribuição dos lucros exorbitantes é uma manobra contra os interesses da nação”, alertam os sindicalistas. “O primeiro objetivo de reorganização da Petrobras deve ser a política de dividendos. A empresa tem de voltar a usar o seu lucro líquido como fonte de financiamento para os seus investimentos”, aponta o economista José Augusto Gaspar ­Ruas, professor da Facamp. “A forma como a companhia vem sendo gerida neste momento é deletéria para a sua sobrevivência no longo prazo, na medida em que ela não reinveste o suficiente no setor de petróleo nem na decisiva transição energética.”

A política de distribuição de dividendos impulsiona, neste momento, discussões sobre a retomada da maior empresa do País a serviço do desenvolvimento e do bem-estar social, no novo governo. Uma reorientação nesse sentido abrange, segundo especialistas, considerar de modo integrado várias frentes como governança corporativa, política de preços, política de refino, conteúdo local, conversão energética e desenvolvimento tecnológico, entre outros aspectos. Uma dificuldade que perpassa a questão da governança e a entrelaça ao futuro produtivo da empresa são os efeitos difusos de longo prazo da Lava Jato, pondera Ruas. “A crise acabou sendo, em última instância, de qualquer estrutura que se proponha a direcionar o desenvolvimento econômico. Ficou estigmatizado tudo que envolve o Estado”, sublinha o professor da Facamp.

Ruas considera a política de preços de derivados adotada até o início deste ano insustentável e diz que, se mantida, “fatalmente jogará uma pressão política sobre a Petrobras toda vez que ocorrer um desequilíbrio internacional”. A solução dependerá de como for remontado o modelo. “Quanto mais a Petrobras investir em refino, menor será a lucratividade, mas ela terá estabilidade nessa lucratividade, pois o refino é bem mais estável, na medida em que é desnecessário subir ou descer demais quando sobem ou caem os preços do petróleo.” Nessa opção, entretanto, se obterá menos investimento privado.

Não basta mudar a política de preços, dizem especialistas. É preciso alterar a remuneração dos acionistas

De modo geral, o direcionamento dos recursos para investimentos, liberados a partir de reformulações tanto da política de dividendos quanto da política de preços, precisa ser pensado, diz, em três frentes: política energética, política industrial associada à indústria de energia e como isso se articula com o desenvolvimento econômico. O novo posicionamento da empresa requer ainda associar uma ­retomada da perspectiva de autossuficiência em petróleo a um encaminhamento benfeito da transição energética, opinam vários especialistas. “O ideal é que a gestão dos recursos seja feita de forma equilibrada, permitindo, ao mesmo tempo, a expansão dos investimentos e o atendimento às regras do estatuto, no que se refere ao pagamento dos dividendos. A contribuição da Petrobras para o Estado brasileiro ocorrerá com a companhia retomando seus investimentos, principalmente em segmentos que garantam a geração de emprego e que preparem a empresa para a futura transição energética”, ressalta o economista Rodrigo Pimentel Ferreira Leão, diretor-técnico do Ineep e pesquisador da UFRJ. Estudos recentes apontam, segundo Leão, três caminhos utilizados pelas grandes petrolíferas no segmento de renováveis: 1. Disseminação da expertise operacional do setor de exploração e produção offshore e de refino para os segmentos de eólicas e de biorrefinarias. 2. Financiamento para startups com alta intensidade tecnológica em renováveis. 3. Construção de negócios integrados ao setor de renováveis.

Em que pesem as dificuldades, há espaço para uma retomada. “Existe hoje uma demanda interna significativa de novas plataformas para produção de petróleo. Sem impactar os lucros da companhia, deve-se desenvolver um planejamento que vai envolver o governo federal no treinamento de pessoal, no aprimoramento e na gestão da indústria naval”, afirma Segen Farid Estefen, professor titular de Engenharia Oceânica da Coppe-UFRJ e ex-representante do governo no Conselho de Administração da companhia.

Futuro. A Petrobras, como as concorrentes, tem na tecnologia e nas energias renováveis a oportunidade de transformar o negócio – Imagem: Agência Petrobras e iStockphoto

A Petrobras, entretanto, direciona quase toda a sua demanda para a construção fora do País. “Ocorre que a indústria naval tem uma grande capacidade de geração de empregos, motivo de alguns países desenvolvidos da Ásia, como a Coreia, o Japão e, mais recentemente, a China, darem ênfase à construção e isso tem de ser levado em conta no Brasil também”, ressalta Estefen. Parte dessa produção, diz, pode dar-se fora, mas em grande medida isso deveria ser feito no Brasil. “É o que a gente chama de conteúdo local. E isso não pode provocar alergia em ninguém”, destaca o professor, pois é a forma de todos os países garantirem empregabilidade.

Outro ponto destacado pelo ex-conselheiro da Petrobras é que o último plano estratégico da empresa considerava, “com muita ênfase”, as energias renováveis, a exemplo das usinas eólicas ­offshore, mas isso, nos últimos quatro anos, não fez parte da política da empresa. “A maior parte das grandes petroleiras considera que, na transição energética, a geração eólica offshore pode ser algo muito atrativo para aquelas que têm atividades no mar. Não só para produção de eletricidade, mas para produção de hidrogênio, amônia, de fontes renováveis, ao que se dá o nome de hidrogênio verde e amônia verde. Essa questão, que também exige muitos investimentos, deve ser vista como parte do futuro de uma empresa de petróleo.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A raspa do tacho “

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