Política
Caixa de Pandora
Em meio à avalanche de benefícios concedidos por Bolsonaro em ano eleitoral, as denúncias de assédio moral disparam no banco estatal responsável pelos pagamentos


“A sensação é a de viver em cativeiro. Trabalhamos, recebemos alimentação, somos liberados a ir para casa, mas temos de voltar a cumprir a pena na manhã seguinte. Este é o relato de diversos colegas”, diz Rafael de Castro, funcionário da Caixa Econômica Federal e dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, vinculada à CUT. Na fracassada tentativa de assegurar a reeleição, Jair Bolsonaro ofereceu benefícios sociais e isenções tributárias que custarão aos cofres públicos ao menos 273 bilhões de reais em 2022 e 2023, um uso da máquina pública sem precedentes desde o fim da ditadura. A concessão dessas benesses eleitorais impôs um regime particularmente cruel aos funcionários do banco com o maior número de correntistas do País. Combinado a uma gestão que focou na redução de gastos com pessoal, na busca por alcançar metas a qualquer custo e em calar qualquer descontente pela intimidação, as agências da Caixa foram jogadas no caos.
É um cenário tão ameaçador que funcionários que não ocupam cargos em organizações sindicais só concordam em relatar os abusos sob anonimato. Um desses trabalhadores topou conceder entrevista a CartaCapital sobre os episódios de assédio moral que sofreu e testemunhou dias antes da votação do segundo turno. “A pressão, da eleição para cá, está absurda. Estão nos deixando malucos”, conta. Durante a pandemia, a Caixa ganhou dezenas de milhões de novos correntistas atraídos pelo auxílio emergencial, sem que houvesse reposição de funcionários para dar conta da nova demanda. Ao longo deste ano, o cenário agravou-se com as novas rodadas de pagamentos do Auxílio Brasil e outros benefícios concedidos nos meses que antecederam o pleito.
No início do governo Bolsonaro, 84 mil funcionários da Caixa providenciavam o atendimento de 93 milhões de clientes. Quatro anos depois, o banco conta com 2,9 mil funcionários a mais, mas ganhou cerca de 55,5 milhões de novos correntistas. Durante os três primeiros anos, a média de correntistas para cada funcionário do banco foi de 1.603, comparado com cerca de 1.268 no final do governo de Dilma Rousseff. Em 2022, a proporção chegou a 1.706 clientes para cada bancário. Com a liberação do crédito consignado para os beneficiários do Auxílio Brasil, os funcionários passaram a ser pressionados a fazer a venda casada de outros serviços bancários. “O que importa é bater a meta. Se vai seguir a regra, o normativo, não se olha isso mais em lugar algum. A meta vem primeiro. Para a abertura de uma conta, por exemplo, precisa verificar o RG do cliente. Na pressa de atingir a meta, a gente abre sem o documento mesmo”, denuncia o bancário que preferiu não se identificar.
A média de clientes por funcionário passou de 1.268, no fim da gestão Dilma Rousseff, para 1.706 neste ano
Com mais de dez anos na Caixa, o funcionário aponta a eleição de Bolsonaro como um ponto de inflexão: “Com o Pedro Guimarães no comando, tudo mudou. A valorização do empregado foi descartada. A gente viu muita gente perder funções”. Guimarães ocupou a presidência do banco de janeiro de 2019 a junho de 2022, quando vieram a público as denúncias de assédio sexual e moral contra ele. A Corregedoria da Caixa coletou mais de 50 depoimentos de vítimas e testemunhas dos abusos cometidos pelo executivo, como apalpar seios e nádegas de funcionárias, convidá-las para frequentar saunas, convocá-las para discutir assuntos profissionais em quartos de hotéis durante viagens e recebê-las em trajes íntimos. A investigação, em andamento na Justiça Federal, aponta ainda arroubos violentos, linguagem inapropriada e comportamento ofensivo contra subordinados que não correspondiam às suas expectativas. O ex-presidente da instituição financeira nega as denúncias e se diz vítima de persecução política. O Ministério Público do Trabalho pede uma compensação milionária pelos danos causados às vítimas.
Algumas dessas práticas contaminaram toda a estrutura da empresa, alimentadas pela dura política de metas implementada após 2018. De acordo com o bancário entrevistado, o assédio moral não ocorre apenas nas agências da Caixa. “Está presente nos grupos das Superintendências Executivas de Varejo (SEVs), nos quais são reportados os placares (de vendas) quatro, cinco vezes por dia. Todos os dias surge mais de um grupo para ranquear as agências.” A consequência de não conseguir ficar nas posições mais altas desses rankings, acrescenta, é ter o gerente da agência ou a equipe chamados a se explicar em reuniões, nas quais são repreendidos publicamente e expostos por sua “incapacidade de atingir os objetivos”.
A saída de Guimarães não sanou o problema. A média de denúncias de assédio, que era de 90 até 2019, subiu para 157 a partir do seu primeiro ano no comando da Caixa e, após sua saída, chegou a 561. Os bancários seguem relatando casos e chegam a igualar a postura da atual presidente, Daniella Marques, ao seu antecessor no constrangimento público diante de metas não alcançadas. Alguns funcionários relatam, inclusive, episódios de assédio eleitoral, mas não confiam no compliance do banco para denunciar. “Todos estão assustados e com medo de retaliações”, diz um deles.
Seis por meia dúzia. A substituição de Pedro Guimarães por Daniella Marques não freou as práticas de assédio moral – Imagem: Marcello Casal/ABR e José Cruz/ABR
Lançada às pressas e com bastante esforço pela administração da Caixa e pelo governo federal, a concessão de crédito consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil foi interrompida logo após a divulgação do resultado das eleições presidenciais, com a vitória de Lula. De acordo com os gestores do banco, a iniciativa foi suspensa até 15 de novembro para “processamento da folha de pagamento do Auxílio Brasil”. Com juros de 3,45% ao mês, o crédito é considerado pela instituição financeira como de alto risco, o que justificaria a cobrança de uma taxa mais alta do que outros modelos consignados – aposentados e pensionistas pagam 2,14% ao mês. O parcelamento da dívida pode ser feito em até 24 parcelas e os pagamentos são de, no máximo, 40% do benefício. Até 20 de outubro, a Caixa tinha financiado 1,8 bilhão de reais nessa modalidade de crédito. Depois dessa data, o banco estatal passou a sonegar informações sobre o valor total, mas especula-se que o montante ultrapasse os 5 bilhões.
Para Rafael de Castro, da Contraf, “Bolsonaro usou a Caixa e o Auxílio para fazer propaganda eleitoral”. Denúncias encaminhadas às organizações sindicais do setor relatam que funcionários foram obrigados, por exemplo, a vestir camisetas da Seleção brasileira ou trajes em verde e amarelo para gravar vídeos, depois compartilhados nas redes sociais. Eliana Brasil, dirigente do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte e Região, afirma que em algumas agências da Caixa, sobretudo no Distrito Federal, os funcionários eram proibidos de usar qualquer roupa ou acessório na cor vermelha, associada à campanha petista. “Esse tipo de orientação chega aos empregados veladamente. Não tem nada por escrito.”
O presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal, Sérgio Takemoto, também ressalta a sutileza do uso da Caixa para fazer campanha para Bolsonaro, observando que as decorações para a Copa do Mundo, enchendo as agências com bandeiras verde-amarelas, apareceram meses antes do início do evento esportivo, fazendo uma campanha subliminar para o atual presidente.
“Na pressa de atingir a meta, a gente abre a conta até sem o RG do correntista”, denuncia bancário
A pressão para atingir metas, por outro lado, é bem mais perceptível. A intimidação por parte dos administradores facilita o uso do banco para promover o atual governo e pode levar a práticas criminosas. É o caso da venda casada de produtos com a concessão do crédito consignado ligado ao Auxílio Brasil. Segundo Eliana Brasil, bancários em Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de outros locais têm sido intimidados para vincular a contratação da linha de crédito a outros serviços do banco, mas eles têm resistido e se negado a cometer o crime, previsto no artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, embora não se neguem a oferecer os produtos.
Embora também seja apontada como um dos motivos para que os lucros líquidos do banco tenham dobrado nos três primeiros anos do governo Bolsonaro em relação aos três anos anteriores, a violência da cobrança por eficiência tem um pesado custo aos funcionários. “Na gestão Guimarães, a cobrança que era feita diariamente ou semanalmente se tornou quatro anos de cobranças hora a hora”, comenta Castro. Segundo ele, a pressão da cúpula da Caixa fez com que a concessão das linhas de crédito para beneficiários do Auxílio Brasil fosse quase automática, sem nenhum tipo de avaliação do grau de educação financeira dos clientes e sem tempo de informá-los sobre as condições de pagamento e possíveis consequências da inadimplência, apesar de circularem comunicações da administração para que os funcionários não vendam produtos que possam fazer com que os correntistas contraiam dívidas excessivas.
Entre os entrevistados, é unânime a percepção de que a troca no comando do banco, com a entrada de Daniella Marques, não ofereceu alívio algum aos trabalhadores. Ao contrário, logo após assumir o cargo, a nova presidente da Caixa dobrou as metas de produtividade gerais e, em 3 de outubro, aumentou o objetivo de venda de cartões em 65%.
* Valores constantes, deflacionados pelo IPCA-IBGE. Fonte: Demonstrações Financeiras Caixa Econômica Federal
O problema não se limita à cultura da empresa, mas à estrutura. A Caixa Econômica Federal foi o único banco do País a não experimentar redução no número de agências durante a pandemia, mantendo os seus 3.372 postos em funcionamento. Mesmo perdendo 5 mil colaboradores em 2020 – chegando ao menor número de funcionários em dez anos –, o funcionamento nas agências foi próximo do normal, uma vez que Guimarães tratava a crise sanitária como o “mimimi do fica em casa”. A Caixa conta, hoje, com 3.407 endereços e quase 87 mil funcionários. Apesar da retomada de crescimento no número de empregados para atender o público, a sede de lucros da administração do banco e a sanha eleitoreira de Bolsonaro aprofundaram os problemas de correntistas e bancários.
Os gastos com remuneração de pessoal só caíram nos últimos quatro anos, embora o número de funcionários tenha permanecido relativamente constante. Os gastos com pagamentos de salário e participação nos lucros para os funcionários da Caixa caíram de 29,7 milhões de reais, em 2017, para pouco mais de 25 milhões, em 2021. A diferença, corrigida pela inflação, é de 12,1 milhões de reais a menos de gasto, destacando que naquele ano o banco possuía apenas 1,7 mil funcionários a mais do que em 2021. O dispêndio com o pagamento de terceiros também caiu para menos da metade. O valor caiu de 2,3 milhões de reais para pouco mais de 1 milhão no mesmo período.
O resultado dessa “economia” são as filas nas quais os beneficiários em busca de crédito consignado esperam por até três horas por atendimento. Até a verba para a compra de produtos oferecidos aos clientes nas agências, como café, açúcar e água mineral, foi cortada em 2022. “A qualidade do atendimento não é culpa do empregado”, observa Castro. “Ele está sobrecarregado num nível que não tem como sustentar.” Procurada, a direção da Caixa não respondeu aos questionamentos de CartaCapital até a conclusão desta reportagem. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Caixa de Pandora “
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