Cultura
Canções da turbulência
A música de Weyes Blood é de uma beleza quase sobrenatural, capaz de unir a melodia clássica a uma percepção aguda do mundo atual


Esta música é tão sinistra”, diz a cantora e compositora Natalie Mering, mais conhecida como Weyes Blood. A artista de Los Angeles cria músicas suntuosas e sinuosas que abrangem tudo, da alienação tecnológica ao apocalipse climático. Ela não está, entretanto, falando da própria música, mas dos sons insistentes que jorram de um telão que transmite, na sala ao lado, o funeral da rainha Elizabeth.
Mering havia voado para Londres para promover seu último álbum, And in the Darkness, Hearts Aglow, lançado este mês, e nos encontramos em um hotel na zona leste de Londres no dia do funeral, com as ruas ao redor assombrosamente desertas. A atmosfera no café é estranha e sombria, como se estivéssemos sussurrando uma para a outra nos bancos de trás de uma igreja.
É um cenário adequado para discutir o trabalho de Weyes Blood, que começou a fazer música com esse nome quando adolescente, inspirada pelo romance Sangue Sábio, de Flannery O’Connor. “Acho que me sentia atraída pela ideia da Sagrada Igreja de Cristo sem Cristo”, diz. “Esse conceito era alucinante e identificável para uma pessoa criada como verdadeira cristã: querer desfazer a religião, mas ainda ter essa arquitetura vivendo vazia dentro de mim. Minha forma de adoração se concentrou na música.” Ela faz uma pausa, e então acrescenta, com a voz aveludada: “Eu tinha 15 anos, e pensei: parece bacana!”
Nos anos seguintes, Natalie ganhou fama por criar música de uma beleza quase sobrenatural, fundindo as melodias desmaiadas de compositores clássicos – seus ídolos incluem Harry Nilsson e Hoagy Carmichael – com sensibilidades e preocupações muito atuais.
A artista norte-americana já foi definida como a Joni Mitchell millenial
Depois de uma década em bandas de vanguarda ruidosas e projetos solo esotéricos, o álbum Titanic Rising (2019) foi sucesso de crítica e público. Kitty Empire, do Observer, escreveu ser “um álbum tão fácil de ouvir quanto sutilmente perturbador”; a revista New Yorker descreveu sua voz como “um contralto rico, claro e melífluo que levou alguns a chamarem-na de ‘Joni Mitchell’ millenial”. Ela colaborou com artistas como Lana Del Rey e Perfume Genius, com quem compartilha a afinidade pelo pop barroco desequilibrado e uma estética de tom vintage.
No dia da entrevista, ela está de preto e branco, combinando uma camiseta com títulos dos álbuns de Bob Dylan e um elegante terno bicolor. Tem cabelos castanhos esvoaçantes e um rosto que não pareceria deslocado nem numa pintura renascentista nem num anúncio da Levi’s. Há uma quietude ao seu redor. É possível imaginá-la como uma sacerdotisa da Grécia antiga, e talvez seu papel não esteja tão longe disso. A primeira faixa de Titanic Rising foi profeticamente intitulada A Lot’s Gonna Change (Muita Coisa Vai Mudar).
Nascida Natalie Laura Mering em Santa Monica, Califórnia, ela mudou-se várias vezes antes de sua família se estabelecer na Pensilvânia, quando ela tinha 11 anos. Seus pais eram cristãos pentecostais renascidos. Embora tenham sido criados em um ambiente estritamente religioso, ela e seus dois irmãos seguiram em busca das próprias crenças: “Eles são como eu – festeiros estranhos. Meus pais dizem que têm filhos soltos”. Seus pais são músicos, e ele, Sumner, namorou Joni Mitchell e Anjelica Huston nos anos 1970.
Na escola, Natalie era “uma verdadeira pária – eu tinha o cabelo muito curto e sempre estava com meu Walkman no corredor, ouvindo fitas de ruídos estranhos. Não me parecia com ninguém no colégio. Cresci muito rápido – parecia uma miniadulta”. Foi encontrar sua turma na cidade mais próxima, Filadélfia, que tinha uma animada cena de música ao vivo.
Sagrado e profano. O clipe It’s Not Just Me, It’s Everybody é o carro-chefe do disco criado durante a pandemia e lançado este mês – Imagem: Redes sociais
Ela pegava o trem e ia a “shows experimentais barulhentos” e shows punk em antigas casas vitorianas, onde fez amizade com estudantes da Universidade das Artes. Mudou-se para Portland, no Oregon, para estudar música, mas desistiu depois de um ano. Tocou nas bandas noise Jackie-O Motherfucker e Satanized. “Fiz alguns shows muito ruins e alguns muito bons”, diz. “Mas tive muita sorte, porque, na maioria das vezes, simplesmente podia ser ruim.” Acabou se mudando para Nova York.
Esses anos difíceis, tanto financeira quanto psicologicamente, foram essenciais para aprimorar suas habilidades. “Demorou um pouco para ficar realmente bom”, diz. Ela cantou em coros quando menina e, mais tarde, teve de aprender a ressoar ao cantar através de um sistema de alto-falantes.
“Tive de trabalhar muitos anos para chegar onde estou. Não comecei fabulosa, mas, depois de muita prática, finalmente aprendi a lidar com a fera.” O que a manteve em movimento foi uma crença firme de que música era o que tinha de fazer, apesar da recepção um tanto abafada, embora com crítica favorável, a seus dois primeiros álbuns, The Outside Room (2011) e The Innocents (2014).
As coisas começaram a se encaixar quando voltou para Los Angeles e lançou seu terceiro e aclamado álbum, Front Row Seat to Earth (2016). Singles como Seven Words (Quero você principalmente de manhã / Quando minha alma está fraca de sonhar) e uma letra de roubar a cena em Sides, de Perfume Genius, a marcaram como uma cronista especializada em desilusão romântica e mal-estar existencial.
“O fato de eu ter acabado por fazer uma música bonita e feminina é uma surpresa”
Titanic Rising cimentou seu sucesso, com críticas elogiando sua acuidade lírica, a rica instrumentação e a beleza elevada de sua voz. Vários críticos comentaram a desconexão entre suas bandas anteriores e o encanto de suas melodias. “Foi preciso um certo nível de coragem para abraçar esse meu lado”, diz. “Sempre fui um pouco mais ousada em meu modo de pensar, no modo como funciono na vida. O fato de eu ter acabado por fazer uma música muito bonita e feminina é uma surpresa. Para mim é, à sua maneira, subversivo e corajoso.”
And in the Darkness, Hearts Aglow foi escrito durante a pandemia. Natalie passou esse período em seu apartamento em Los Angeles, preparando comida para o cachorro Luigi, ligando para os amigos e assistindo a DVDs de uma locadora local – recentemente, ela foi curadora de um Fim de Semana de Filmes de Terror em Nova York.
“Eu estava tentando processar essa ideia de mudança irrevogável e o que isso faz com os relacionamentos pessoais, o dano que pode causar às pessoas, porque é muito isolante”, diz. Ao mesmo tempo, o álbum é “um romance – há muitas canções de amor”. Na terna Hearts Aglow, ela canta: Baby você é o único/ Que vai me levar até o cais/ Leve-me naquela roda-gigante. No final do álbum, o casal está fazendo cinzas da nossa alegria.
“Eu estava num relacionamento, que teve muitas fases diferentes e acabou”, diz, simplesmente. “Mas não me sinto mal quando terminam as coisas que têm de terminar – a morte é uma fonte de vida. Há muita vida e morte no disco.” Uma imagem recorrente é a de um coração partido: a arte da capa mostra Mering como um ser angelical com o peito brilhante, parecendo Cristo. “É como um bastão de luz: você o quebra e ele brilha. É sobre o poder de ter seu coração tão partido que dele emanaria uma luz.”
A pandemia também exacerbou nossa dependência da tecnologia, assunto sobre o qual a artista escreve há muito tempo. “Acho que toda vez que você ganha algo, perde algo. Então, sim, ganhamos essa capacidade inconcebível de nos comunicar em todo o mundo e nos promover, lutar no mercado global na escala mais individual, mas a compensação é gigantesca.” No vídeo de It’s Not Just Me, It’s Everybody (Não Sou Só Eu, É Todo Mundo), Mering dança com um celular animado que se banqueteia com cadáveres espalhados por um set de filmagem.
Mering apoiou Bernie Sanders como candidato democrata em 2020 e espera que uma figura como ele ou Alexandria Ocasio-Cortez possa se tornar presidente durante nossas vidas. Mas ela desconfia de qualquer grande afirmação sobre o poder da música e da arte para mudar as coisas: “Nunca tive pessoas vindo até mim e dizendo: ‘Não acreditava nisso até ouvir sua música’. Normalmente, elas dizem algo como: ‘Também me sinto’. Eu adoraria poder escrever uma música para salvar o mundo, mas não estou convertendo ninguém, estou pregando para o coro. Mas o coro precisa de pregação”.
Álbuns. Os dois primeiros trabalhos, The Outside Room (2001) e The Innocents (2014), cimentaram a carreira que explodiria com Titanic Rising (2019) – Imagem: Redes sociais
O que ela espera fazer, diz, é “lançar luz sobre os detalhes da desilusão, para dar mais sentido a ela, em vez de viver nesse vago mistério de ‘há alguma coisa errada’. Gosto de pensar em mim mesma como um bálsamo para as pessoas que sofrem com esse tipo de ansiedade”.
Uma preocupação central do álbum, apresentada como um possível remédio para o isolamento que vem com a dependência digital e o capitalismo moderno, é a ideia budista da interconexão de todas as coisas. “Estamos todos conectados aos animais, às árvores e à terra. Tudo é muito permeável: as coisas penetram na nossa pele”, diz, admitindo ter “um saco” de crenças espirituais favoritas.
“Após o cristianismo, entrei muito na filosofia oriental e nos mitos de diferentes culturas”, conta. “Psicologicamente, é assim que lidamos com a realidade, através de histórias. É quase um impulso evolutivo: criar significado a partir de algo para não entrarmos no caos.”
Ela está ansiosa para fazer a turnê do álbum, reunir o público para experimentar canções escritas sobre o isolamento dos anos de pandemia. “Acho que as pessoas ainda estão tentando lidar com a negação de quão traumática foi toda essa experiência – há muita bagagem existencial, com certeza. Mas sinto que o álbum realmente vai ganhar vida no palco.”
Tudo remonta à ideia de que, para muitas pessoas, inclusive ela mesma, a música ao vivo é o mais perto que se chega de uma experiência religiosa. “Se você examinar a história da música, a maior parte foi feita para Deus – a música secular costumava ser a exceção. Espero manter o canal vivo, não no sentido dogmático cristão, mas no sentido de a música ser um veículo transcendente que o leva a um espaço mais sagrado.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Canções da turbulência “
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