Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

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Respirar fundo

As sociedades tanto quanto os indivíduos necessitam de praticar a respiração profunda para poder prosperar

Respirar fundo
Respirar fundo
O ex-presidente Jair Bolsonaro: Foto: Mauro Pimentel/AFP
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Entre as culturas orientais, a prática de respirar fundo é considerada a chave natural de uma vida saudável. As propriedades curativas são imensas: reduzem as dores, eliminam as toxinas, aumentam o fluxo sanguíneo e melhoram a imunidade, baixam a ansiedade e o ritmo cardíaco, reduzem as inflamações, aumentam o nível de energia, acalmam o sistema nervoso e relaxam o corpo e a mente. As sociedades, tanto quanto os indivíduos, necessitam de praticar a respiração profunda para poder prosperar. A sociedade brasileira e os democratas de todo o mundo solidarizados com ela têm nestes dias extrema necessidade de respirar fundo. Nestes últimos anos foram tantos os agentes tóxicos e tão grande a falta de sangue fresco que a imunidade democrática da sociedade brasileira atingiu os seus níveis mais baixos desde o fim da ditadura. Era elevadíssimo o nível de toxicidade fascista, de sangue mal renovado, excessivamente ácido e incapaz de absorver as vitaminas da verdade, da razão e da convivência pacífica.

No último mês em particular, o Brasil dormiu mal, atormentado por maus pensamentos, com o sistema linfático afetado e incapaz de drenar os líquidos do bom senso, da confiança, da simpatia. De tudo isso se conclui que o corpo e a alma do País precisam urgentemente de respirar fundo, a precondição para ganhar a energia exigida pelo novo ciclo democrático. Terão condições para respirar fundo pelo tempo necessário para recuperar o ânimo? É difícil prever. Enumero algumas razões tanto para uma possível resposta negativa como para uma resposta positiva.

Quanto às primeiras, há que contar com as almofadas de toxicidade do tamanho de nuvens com que os fascistas brasileiros e internacionais vão tentar sufocar a respiração do Brasil. A primeira almofada, a mais densa, é da contestação provável dos resultados eleitorais para disfarçar as imensas fraudes que os serviçais do governo Bolsonaro cometeram (orçamento secreto, compra de votos, intimidação generalizada) e que, para surpresa deles, não deram os resultados previstos. Nitidamente subestimaram a vontade dos brasileiros e brasileiras.

A segunda almofada é a da toxicidade ambiental gerada pelo bolsonarismo secular, empresarial, midiático, religioso, popular. É um smog fascizante, bem à superfície da vida social e relacional, mistura de fumaça de mentira e de neblina de ódio e de cegueira industrializada que impede o reconhecimento do outro e neutraliza a inclinação natural da solidariedade, da partilha e da compaixão. O smog concebe a sociedade como um campo de batalha dominado pela lógica binária do amigo/inimigo, a sobrevivência do “nós” assente na eliminação física do “eles”. A primeira almofada asfixia rapidamente, a segunda lentamente.

Há ainda uma terceira almofada tóxica, bastante mais difusa, nem por isso menos perigosa. Reside no efeito de que a perda de visibilidade criada pelo smog fascizante pode ter entre os mais afetados pela poluição antidemocrática, as classes populares e as classes médias. A mistura da fumaça e da neblina impede ver com nitidez a gravidade das ameaças à respiração democrática. Favorecem uma vontade infundada de pensar que tudo voltou à normalidade e que o mais saudável é esquecer os malefícios recentes e acreditar que o ar está puro apenas porque o sol voltou. O outro lado do ódio inextirpável é o amor indiscriminadamente inocentizador. De um lado, o ressentimento, do outro, a falsa consciência, ambos a poluir insidiosamente a respiração democrática.

Também há uma boa razão para pensar que a respiração funda vai ser suficientemente longa e tranquila para desintoxicar a sociedade e permitir que ela absorva doses fortes de vitaminas democráticas que a fortaleçam contra possíveis percalços futuros. A toxina Bolsonaro foi tão sufocante que, pela primeira vez depois do fim da ditadura, os brasileiros “viram claramente visto”, como diria Luís de Camões, que a democracia nem é irreversível nem suficientemente robusta para se defender institucionalmente dos antidemocratas. A democracia só sabe respirar fundo com os pulmões dos democratas mobilizados para defendê-la ativamente. Só é um dado para quem quer destruí-la. Os que querem defendê-la têm de fazê-lo como uma conquista sempre em curso. A recordação desse trauma não pode ser normalizada nem suprimida. Os psicólogos e psiquiatras da alma brasileira só a curarão incitando-a a ir para as ruas, as praças, os terreiros, as fábricas, as comunidades, as igrejas, as praias dar testemunho de si. As camisetas da cor da esperança e da luta devem ir vestidas por dentro da pele e não por fora. É mais difícil, mas dura mais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Respirar fundo”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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