Frente Ampla
De carioca para paulista: um papo reto sobre as eleições
O estrago que a parceria Bolsonaro, Wilson Witzel e Cláudio Castro causou ao Rio de Janeiro está em um nível que nem nos piores pesadelos poderíamos prever


Na minha casa, minha mãe sempre fez questão de anunciar que quem avisa amigo é. Pois bem, o papo aqui é com os paulistas, nossos vizinhos prestes a escolher o seu governante pelos próximos quatro anos.
A disputa pelo comando do estado mais rico do país está entre um moderado ex-prefeito da capital com conhecimento das causas e resultados para mostrar e um forasteiro ultra-direitista que exibe a proximidade com o atual presidente como único trunfo de campanha.
Já botando o bedelho no bagulho alheio, preciso dizer que o carioca Tarcísio, esse que forjou o domicílio eleitoral em São Paulo e desconhece até o local onde vota, nem nós queremos. E vejam que nós temos um histórico de escolhas de governantes desastrosas, que só nos afunda em violência, opressão pelas milícias, afrontas aos direitos mais básicos para se existir. Mano, não é hora de brincar com o fogo do qual não se consegue correr depois. Não arrisquem importar o que nós temos de pior.
O território, aqui, está dominado. Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), atesta que os milicianos avançaram quase 400% em 16 anos. Esses grupos comandam, com armas e achaques, uma área equivalente a duas vezes a cidade de Niterói, ou a 64 Copacabanas. Da Zona Oeste da capital à Baixada Fluminense, na Região Metropolitana, cerca de 4,4 milhões de pessoas vivem sob o domínio do medo.
Curiosamente, nas zonas eleitorais instaladas nas áreas acaudilhadas por criminosos, o presidente Jair Bolsonaro abocanhou 90% dos votos no primeiro turno das eleições. Para bom entendedor, meia palavra deveria bastar.
O estrago que a parceria Bolsonaro, Wilson Witzel e Cláudio Castro causou ao Rio de Janeiro está em um nível que nem nos piores pesadelos poderíamos prever. A política de “mirar na cabecinha” se concretizou e nos confrontou com a barbárie em estado bruto, se é possível.
A população das favelas e periferias, com fome, tem de arrumar força para correr das balas. Em menos de dois anos, Castro chancelou três chacinas enquadradas entre as cinco mais letais da nossa história. Em abril de 2021, no Complexo do Jacarezinho, antigo reduto industrial onde hoje faltam empregos, 28 pessoas morreram, incluindo um policial.
Parte das nossas elites, os agraciados pela oportunidade de viverem em zonas de conforto, seguem acreditando na falsa suposição de que bandido bom é bandido morto, o que já é um pensamento perverso num país que não tem pena de morte institucionalizada. Mas imagine você, vizinho paulista, que a matança maior é de trabalhadores inocentes em busca de sustento, de crianças a caminho da escola.
À frente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio, lido com as tragédias diárias que não viram manchetes de jornais, mas dão a dimensão do nosso esgotamento. Ora são mães que chegam em desespero clamando por alento e justiça pelas mortes de seus filhos, ora são pais inconsoláveis em busca de parentes desaparecidos, sem contar famílias inteiras ensanguentadas por balas disparadas até de helicópteros que rasgam o céu de onde muitos esperam milagres.
Não há milagres, amigos paulistas, eu me permito a intimidade. A milícia que matou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, no fatídico 14 de março de 2018, não tem dó nem piedade por quem ousa enfrentá-la, ela nos aterroriza. Vocês não fazem ideia do quão devastadora pode ser a vida sob toque de recolher e liderança vil, mas têm a sorte de contar com o programa Olho Vivo, esse que botou câmeras nos uniformes de PMs, o suficiente para reduzir a letalidade policial em 80% e até a produtividade dos agentes aumentou. Lutem por mantê-lo, é um instrumento de garantia de segurança pública.
Sim, eu acompanho as notícias de São Paulo. Relembro que a ciência de vocês acalentou o país inteiro com uma vacina urgente e necessária contra a Covid-19 em nosso momento mais grave como país, durante a pandemia que nos tirou quase 700 mil vidas. Tarcísio, o carioca que lhes pede votos, anunciou que pode acabar com a obrigatoriedade da vacinação. Não permitam o avanço da ameaça, as vacinas salvam, vocês sabem bem que boa parte das mortes durante a pandemia, inclusive, poderia ter sido evitada.
Não pretendo sensibilizar quem não enxerga a dor alheia, mas onde há humanidade, o afeto é possível. Por isso, faço um apelo, com a autoridade de quem legisla em um estado que acumula prisões de seis governantes encalacrados em processos por corrupção: dêem o exemplo, paulistas, mostrem aos cariocas como se escolhe um governador. Como canta o paulistano Emicida, que nos une pela música, segunda chance é só no videogame, então é bom ficar ligeiro, viu! E vamos tomar uma breja pra celebrar que o bem triunfará.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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