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Autoritarismo líquido

Ao intervir na composição do STF, Bolsonaro busca criar medidas de exceção no interior do sistema democrático que atentam contra a Constituição

Autoritarismo líquido
Autoritarismo líquido
Foto: Sergio Lima / AFP
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A intenção de Bolsonaro de interferir na composição do STF vem se revelando dia a dia e ganhou corpo, recentemente, com a declaração de seu líder na Câmara, Ricardo Barros, defendendo que se aumente de 11 para 16 o número de ministros da Suprema Corte. Como este governo nos obriga a dizer o óbvio todos os dias, é preciso que se alerte que se trata de uma proposta descabida tanto na dimensão jurídica quanto na política.

Juridicamente, a medida é inconstitucional, porque desestrutura o equilíbrio entre os Poderes, além de conceder ao chefe do Executivo a faculdade de ­designar mais ministros do que lhe seria compatível. Caso Bolsonaro seja eleito, seu poder não pode ser ampliado durante o mandato. O que ele busca é centralizar mais poderes do que a Constituição determina, e uma PEC não pode romper com cláusulas pétreas da Carta Magna.

No plano político, trata-se de uma forma de golpe similar aos perpetrados por Viktor Orbán, na Hungria, e Recep Tayyip Erdogan, na Turquia. Ambos estabeleceram o que muitos chamam de democracia iliberal, modelo que prefiro chamar de autoritarismo líquido – um mecanismo de produção sequencial de medidas de exceção no interior do sistema democrático, a título de fazer cumprir os princípios constitucionais, mas que acaba provocando a ruína da própria democracia e golpeando a Constituição.

Foi exatamente o que fizeram Orbán e Erdogan, ao interferirem na independência do Judiciário de seus países. Na Turquia, cerca de 3 mil membros desse Poder foram afastados, em 2016, por supostamente serem contrários ao mandatário, em meio a alterações na composição das Supremas Cortes. Deu-se, assim, uma centralização de poderes no Executivo, subjugando o Legislativo e o Judiciário. Apesar de se manter alguma aparência de democracia pelas eleições, na prática, o que se verificou a seguir foi o impedimento do verdadeiro exercício da atividade de oposição.

Tal orquestração instaurou um regime autoritário, em que o poder político se sobrepôs aos direitos e à Constituição, sem uma oposição com plenas condições de funcionamento no sistema. Nesses casos, a democracia é esvaziada de sentido, só existindo na aparência, como uma casca, uma maquiagem. É o que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chama de “processo desconstituinte”, ou seja, a Constituição e a democracia permanecem somente como forma, sem conteúdo material nem significado.

Esse tipo de autoritarismo líquido também foi imposto na Venezuela, seja com a realização de processos penais de exceção contra opositores, seja também pela alteração do número de ministros do Supremo, a fim de dominar o Judiciário, seja com o estabelecimento de uma assembleia constituinte dotada de poderes de decisão sobre questões cotidianas do Estado e da sociedade. O critério de medidas de exceção inverte a lógica democrática, ao permitir que o poder político decida quando a Constituição deve ou não ser aplicada, em vez de se subordinar a ela.

Falaciosamente, a proposta de Bolsonaro de mudar a composição do Supremo acena com o argumento de barrar o que ele e seus adeptos chamam de ativismo judicial. Em entrevistas, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, chegou a falar em “enquadramento” do Judiciário e usar até o termo “ditadura” para se referir à atuação desse Poder, o que beira a desfaçatez. A última vez que o número de ministros do Supremo foi alterado deu-se justamente na ditadura que tantos danos trouxe à democracia brasileira.

Essas distorções discursivas e de propósito às vésperas de um processo eleitoral, somadas a outras medidas do governo de Bolsonaro e à sua conduta como presidente, intensificam claramente no Brasil a presença da forma líquida de autoritarismo que descrevi acima. Quando se subjuga o Judiciário, intencionando impedi-lo de ser o guardião da Constituição, o que está em vigência não é uma democracia constitucional, e sim um regime autoritário. O populismo reacionário do atual presidente, que busca centralizar poderes no Executivo, em detrimento dos demais Poderes de Estado e, em especial, da Jurisdição, avança na direção de destruir efetivamente a democracia e a Constituição.

Diante do risco desse assolamento, recomenda-se que os democratas e, mais que isso, as pessoas de bom senso do País não votem em Bolsonaro. Não se trata mais de uma eleição, mas, em verdade, de um plebiscito para decidir se vamos ou não ter uma ditadura no Brasil, sob a forma própria dos regimes autoritários do século XXI. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Autoritarismo líquido”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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