Economia
Vale de lágrimas
Juros em alta, custos crescentes e maior pressão dos legisladores vão encerrar a era de ouro das Big Techs?


Enormes demissões no Snapchat, quedas drásticas na avaliação da Meta e da Apple e congelamento de contratações em outras grandes empresas de tecnologia estimularam uma pergunta cada vez mais comum: a era de ouro do Vale do Silício está perto do fim? A resposta é complicada, dizem especialistas. A indústria tecnológica está em crescimento impressionante há algum tempo, impulsionada nos últimos anos pela pandemia, que forçou a maior parte do mundo a viver online e aumentou a demanda por serviços de tecnologia. Essa explosão – e os altos salários e benefícios que vieram com ela – parece estar em fase de desaceleração. “Essa festa não poderia durar para sempre”, disse Margaret O’Mara, professora da Universidade de Washington e autora de The Code: Silicon Valley and the Remaking of America (O Código: o Vale do Silício e a Reconstrução da América). “De muitas maneiras, estamos voltando ao normal depois de uma grande corrida durante a qual tudo ficou superdimensionado.”
Essas tendências são exacerbadas por uma desaceleração global maior, à qual o mundo da tecnologia não está imune, acrescenta O’Mara. O Federal Reserve elevou as taxas de juro três vezes em 2022, e mais aumentos são esperados. O ambiente anterior de taxas baixas tinha reforçado o boom tecnológico e criado um desfile de “unicórnios”, empresas cujas avaliações ultrapassam 1 bilhão de dólares. Exemplos notáveis incluem a Airbnb e a Uber, avaliadas em 47 bilhões e 82 bilhões de dólares em suas respectivas ofertas públicas. Mas, à medida que as taxas de juro mudam, disse O’Mara, há “menos dinheiro em circulação” e os investidores vão aplicá-lo “de maneira muito mais criteriosa”. A professora acrescenta: “Alguns investidores ainda terão dinheiro, mas durante uma crise como esta o fluxo dos negócios vai esfriar”.
O rápido crescimento também foi moderado por uma série de histórias de advertência de alto nível, do declínio da WeWork ao colapso da Theranos, empresa de exames de sangue que ganhou popularidade em um ambiente positivo de mídia e acumulou uma avaliação de mais de 1 bilhão de dólares antes que se descobrisse que suas informações eram falsas. Essas histórias, juntamente com um maior escrutínio da indústria de tecnologia em geral na última década, incluídas revelações de denunciantes contra o Facebook e interrogatórios públicos de executivos de tecnologia no Congresso, têm abalado a imagem do Vale do Silício. Mesmo alguns de seus defensores mais influentes, como o ex-presidente Barack Obama, parecem ter reconsiderado. Obama usou extensamente o Facebook em sua campanha de 2008 e elogiou a empresa em seu discurso sobre o Estado da União de 2011, mas condenou seu papel na disseminação de desinformação, particularmente em torno das eleições, numa recente palestra na Universidade Stanford. “Uma das maiores razões para o enfraquecimento da democracia é a profunda mudança que ocorreu na forma como nos comunicamos e consumimos informações”, disse.
“Essa festa não poderia durar para sempre”, afirma Margaret O’Mara, da Universidade de Washington
Legisladores e agências federais dos EUA agora entraram na briga. Com a crescente ação da Comissão Federal de Comércio e a legislação iminente do Congresso, as Big Techs podem estar diante de seus maiores obstáculos até hoje. A percepção pública da tecnologia em geral também mudou, com 68% dos norte-americanos convencidos de que as empresas de tecnologia têm poder e influência demais na economia, acima dos 51% em 2018. “Os norte-americanos realmente não gostam de grandes coisas. Ficam preocupados com o poder concentrado”, disse O’Mara. “Ninguém consegue ser a criança de ouro e ser uma empresa de 2 trilhões de dólares. Faz parte do ciclo de vida.”
A geografia do Vale do Silício também está em mutação, segundo especialistas. Um termo que abrange a área ao sul de São Francisco, o Vale consolidou-se por quase um século na visão pública como centro de inovação. Começou sua ascensão como centro de tecnologia quando as operações militares dos Estados Unidos estabeleceram locais para contratos de pesquisa a partir dos anos 1930, tendência que continuou na esfera privada nas décadas seguintes. Mas a indústria tecnológica se expande muito além da Área da Baía da Califórnia, tendência acelerada pela pandemia. Em 2021, a empresa de carros elétricos Tesla mudou sua sede para Austin, no Texas, após movimentos semelhantes de outras companhias de tecnologia como Oracle e Hewlett-Packard.
Isso também se refletiu nas contratações, disse Brent Williams, que trabalha na agência de recrutamento Michael Page. Segundo ele, é parte do efeito que a indústria chama de “inverno do capital de risco”. “A Covid mudou todo o jogo”, disse. “Tornou-se extremamente competitivo para as empresas adquirirem talentos, porque elas procuram não apenas profissionais na baía, mas em todos os EUA.” Essa tendência, juntamente com o surgimento das políticas de trabalho a partir de casa, teria sido chocante em tempos pré-pandemia, quando as companhias tech investiram bilhões em amplos escritórios e ofereciam aos funcionários vantagens como transporte de ida e volta ao trabalho e refeições elaboradas no local.
Apesar da crescente lista de obstáculos, “o Vale do Silício continua incrivelmente robusto”, acredita Nicholas A. Bloom, professor de economia de Stanford. A região passou por “vários ciclos”, incluídas as desacelerações em 2001 e 2008, e se recuperou a cada vez, acrescentou. “Embora algumas empresas possam ter migrado para fora por causa do trabalho remoto e da globalização, o Vale do Silício ainda é o marco zero, sem nenhuma outra área que chegue perto de sua proeminência na indústria.”
De fato, concorda O’Mara, é improvável que vejamos uma grande mudança no legado do Vale ou em seu lugar físico no coração da baía. “A Área da Baía e São Francisco têm uma atração resiliente e qualidades distintas que são difíceis de replicar em outros lugares. Há uma razão pela qual muita gente vai morar lá. Querem estar lá.” Isso continua a ser verdade, apesar de a Califórnia enfrentar uma crise habitacional, com trabalhadores a migrar para estados mais baratos. “O obituário da indústria foi escrito prematuramente algumas vezes”, acrescenta a acadêmica. “Pode ser o fim de uma era para o Vale do Silício, mas é improvável que seja o fim do Vale do Silício.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vale de lágrimas “
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