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Beco sem saída

As tropas russas sofrem com o conflito prolongado na Ucrânia e cedem terreno

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O exército russo, parece, não estava preparado para um conflito de longa duração- Imagem: Ministério da Defesa/Rússia
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Vistas puramente em termos do tamanho de suas formações e equipamentos, as forças terrestres russas na Ucrânia ainda representam uma séria ameaça em vários eixos. Na prática, é altamente improvável que os militares russos consigam se recuperar de sua trajetória cada vez mais terminal no campo de batalha, embora sua derrota exija tempo e uma luta amarga. Para entender o porquê, é necessário examinar a força por trás de seu equipamento e seu pessoal.

Os Estados Unidos avaliam a capacidade militar por meio da abreviatura DOTMLPF. O fato de oficiais de alto escalão do país tentarem regularmente pronunciá-la como uma sigla pode exemplificar o absurdo militar, mas a abreviação é um pouco redimida por ser bastante abrangente. Significa: doutrina, organização, treinamento, material, liderança e educação, pessoal e instalações. Observar as forças armadas russas nessas categorias revela o desempenho inferior ao seu potencial.

Para começar, os pontos fortes: a doutrina russa – a teoria de como o exército deve lutar – é clara, precisa, bem evidenciada e conceitualmente elegante. Com frequência está muito à frente da teoria militar ocidental. Isso cria um desafio metodológico para as avaliações de inteligência das operações russas, porque, se forem executadas conforme descrito nas ordens militares superiores, a conclusão é de que geralmente teriam êxito. Mas a prática raramente coincide com a teoria.

O material russo é de modo geral excepcionalmente bem projetado e construído adequadamente. Para dar um exemplo específico, o Orlan-10, principal drone pilotado pelas forças russas, é barato e simples de operar. Não é sofisticado, mas como voa alto demais para ser alvo de defesas aéreas de curto alcance e é muito barato para justificar o uso de ­defesas de longo alcance, foi projetado para ser extremamente difícil de destruir, ao mesmo tempo que oferece a seus operadores uma visão suficiente do campo de batalha para identificar alvos.

A fraqueza do material russo tende a ser que ele é inflexível, projetado para executar bem uma tarefa específica, e que várias gerações de sistemas empregadas simultaneamente dificultam a manutenção. Esse problema foi exacerbado na Ucrânia, à medida que os russos tiram cada vez mais gerações de equipamentos do armazenamento para substituir as perdas.

Os militares russos também se beneficiam de suas instalações. Eles têm uma rede ferroviária eficiente e otimizada para movimentar equipamentos de combate. Também têm muitas fábricas para produzir munições, com as empresas envolvidas diretamente sob controle do governo e acesso às matérias-primas mais necessárias. Onde o Ocidente buscou eficiência em detrimento da resiliência, os russos ainda têm capacidade excedente em suas linhas de produção. Isso é muito menos verdadeiro quanto a armas de precisão, uma vez que a Rússia carece de uma indústria microeletrônica avançada e, portanto, precisa importar componentes críticos.

Esses pontos fortes não compensam, porém, as deficiências significativas dos militares russos. Para começar, organização: as forças armadas da Rússia foram projetadas para combater guerras curtas e de alta intensidade. Sem uma mobilização nacional total, são muito pequenas, suas unidades carecem de capacitação logística e seus equipamentos são inadequados para uma guerra prolongada. Quando os militares russos emitiram ordens para suas tropas no outono de 2021, estimaram a necessidade de serem mobilizadas durante nove meses. Agora estão perto desse limite. Os ucranianos, por outro lado, organizam suas forças armadas desde 2014 exatamente para esse tipo de guerra.

Uma das maiores deficiências das forças armadas russas é em liderança e educação. A cultura de liderança é ditatorial e imposta pelo medo. O receio da punição criou um exército no qual os soldados implementam obstinadamente as ordens mesmo quando não fazem mais sentido. As unidades de artilharia russas processam rotineiramente alvos na ordem em que recebem missões de fogo, sem priorização contextual. Mesmo quando uma nova inteligência indica que um alvo se moveu, as unidades russas geralmente atacam o local anterior e depois o novo e dão ao alvo tempo para se deslocar mais uma vez. Uma liderança fraca também significa que a Rússia tem sérios problemas com seu pessoal. Há um plano de carreira limitado para soldados a longo prazo. Isso leva a problemas de retenção que fizeram com que as forças militares russas continuassem a depender de recrutamento.

As falhas de treinamento, liderança e planejamento cobram seu preço

Com uma população em rápido envelhecimento, a Rússia carece de jovens recrutas. O baixo padrão de vida em grande parte do país produz tropas não familiarizadas com muita tecnologia moderna. Além disso, na ausência de qualquer ideo­logia clara ou liderança forte nas unidades, as tropas estão amplamente desmotivadas, não trabalham efetivamente como equipes e não estão dispostas a arriscar a vida pelos outros. A infantaria russa, portanto, carecia de poder de combate ofensivo. Esses problemas se agravaram à medida que as baixas aumentaram. Mais uma vez, essa é uma área em que a Ucrânia tem claras vantagens.

Talvez uma das maiores fraquezas do sistema militar russo seja o treinamento. Primeiro, ele simplesmente não faz o suficiente. No início da guerra, havia menos de cem pilotos russos totalmente treinados na fronteira com a Ucrânia, apesar de a Rússia ter ao menos 317 aviões de combate implantados no teatro de operações. Em segundo lugar, os soldados russos tendem a receber treinamento estritamente limitado à tarefa que lhes foi designada. Isso torna essas tropas inflexíveis, sem consciência situacional do que é feito ao seu redor e incapazes de cobrir as tarefas uns dos outros. Terceiro, os russos fazem a maior parte de seu treinamento em suas unidades. Como as unidades estão na Ucrânia, há pouca capacidade para treinar novos recrutas antes de serem enviados para a guerra.

Isso dificulta muito os esforços de mobilização e a geração de novas unidades. A Ucrânia tem dificuldade com o treinamento porque, ao contrário da Rússia, suas instalações estão sob o ataque de mísseis – daí a importância do treinamento no Reino Unido –, mas o treinamento oferecido é muito superior.

Apesar de sua superioridade de equipamentos em relação à Ucrânia no início do conflito, a Rússia teve um desempenho significativamente inferior ao seu potencial. Além disso, as áreas institucionais de fraqueza tornam suas forças armadas muito menos adaptáveis. Agora que as tropas russas estão em menor número e desmotivadas, e seu equipamento se deteriora, as perspectivas do ­Kremlin diminuem rapidamente.

Nota de CartaCapital: Vladimir ­Putin e seus subordinados elevaram o tom das amea­ças. Na quarta-feira 21, o presidente russo anunciou a convocação de 300 mil reservistas para reforçar as linhas na ­Ucrânia e afirmou que o país está disposto a usar todos os recursos disponíveis para defender sua posição no conflito. No dia seguinte, ­Dimitri Medved, atual vice-presidente do Conselho de Segurança, deixou explícito o que havia ficado implícito no discurso de Putin, a ameaça atômica. “Qualquer arma, incluindo armas nucleares estratégicas, podem ser usadas para a proteção das ­regiões ocupadas”, afirmou em pronunciamento na tevê. “O establishment do Ocidente e todos os cidadãos dos países da Otan precisam entender que a Rússia escolheu seu próprio caminho”. Moscou também manteve o referendo relâmpago nas áreas ocupadas do Donbas, jogo de cartas marcadas cujo resultado está previamente determinado: sob a mira dos soldados russos, a maioria dos habitantes das regiões separatistas não terá outra opção a não ser aceitar a anexação à Rússia. Os Estados Unidos e a Europa prometem ampliar as sanções econômicas ao “inimigo”. Opositores russos tomaram as ruas de Moscou após o anúncio da convocação dos reservistas, enquanto milhares de compatriotas lotaram os voos internacionais em busca de refúgio no exterior. •


*É pesquisador sênior de guerra terrestre no Royal United Services Institute.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Beco sem saída “

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