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A onda do som relaxante

Popularizado na pandemia, o lo-fi, gênero conhecido pela produção caseira e pelo anonimato dos artistas, começa a encontrar um lugar no mainstream

A onda do som relaxante
A onda do som relaxante
Baixa fidelidade. Os canais Lofi Girl e Fruits Music, sucessos no YouTube, capricham na estética das animações que acompanham de sons de chuva a arranjos do pop - Imagem: Lofi Fruits e Lofi Girl
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Em um estúdio localizado no Morumbi, Zona Sul de São Paulo, um grupo formado por músicos, produtores e curiosos acompanha a performance de Linearwave, nome artístico do paulistano Yuri Bastos. Em pouco mais de meia hora, ele dispara do laptop canções com influências do jazz americano e da bossa nova e acrescenta a elas batidas ao vivo, com efeito relaxante.

Linearwave tem 1,4 milhão de ouvintes mensais nas plataformas e sua demonstração integrará uma compilação de singles, a ser lançada no YouTube este mês. A iniciativa da maior plataforma de vídeos do mundo mostra o quanto o lo-fi, gênero que cresceu durante a pandemia, parece estar encontrando um lugar ao sol no mainstream.

O termo lo-fi deriva da expressão low fidelity, de baixa fidelidade, criada em oposição ao velho e bom hi-fi. Trata-se de uma vertente musical conhecida pela produção franciscana, o estilo caseiro e pelo anonimato dos artistas, que são invariavelmente desconhecidos do grande público. Ou eram.

“A gente participou de alguns eventos no ano passado e quer investir mais em performances ao vivo”, diz o carioca Daniel Sander, expoente do estilo, que adotou o nome artístico de colours in the dark.

A estreia-solo do ex-Beatle Paul ­McCartney, em 1970, e a dobradinha formada pelos álbuns Smiley Smile e Wild Honey, lançados pelo grupo americano Beach Boys, em 1967, são alguns exemplos de produção lo-fi. Mas foi a partir de meados da década de 1980 que a nomenclatura se tornou mais conhecida, graças ao empenho do DJ e produtor estadunidense William Berger, que dedicava um espaço generoso às produções amadoras em seu programa de rádio.

O gênero, apesar disso, seguiu seu destino meio silencioso nos anos seguintes, até que, cerca de dez anos atrás, voltou a despertar maior interesse. À altura, o ­rapper e produtor americano J. Dilla e o produtor japonês Nujabes desenvolveram o lo-fi hip-hop, que “desacelera” as batidas frenéticas das produções de rap, tornando sua execução mais palatável e suave. É essa escola que, desde então, a maioria dos artistas e produtores brasileiros segue.

Mas o lo-fi, cada vez mais, tende a ser acompanhado também por imagens. Um bom exemplo do formato é o canal Lofi Girl, lançado em 2015, no YouTube. Ele traz uma bem cuidada animação que mostra uma garota, em diferentes situações, escutando música com fones de ouvido – a inspiração estética vem dos filmes A Viagem de Chihiro e O Meu Vizinho Totoro, de Hayao Miyazaki. O som que acompanha os vídeos é criado por diferentes produtores de lo-fi.

O estilo é consumido por quem busca um som sem vocais e tranquilo, para ser ouvido durante o trabalho ou antes de dormir

O canal tem, hoje, 11,5 milhões de inscritos. Em fevereiro de 2020, ele foi tirado­ do ar, de modo acidental, e 13 mil horas de transmissão, com 218 milhões de views, se perderam. Mas, como diz o ditado popular, há males que vêm para o bem. “A retirada da Lofi Girl do ar foi o maior impulsionador de audiência que podiam ter”, explica Bastos. “O episódio gerou notícias no mundo todo e, quando o canal voltou, eles foram para um novo patamar de audiência.”

O lo-fi é consumido, sobretudo, por ouvintes que buscam um som relaxante e sem vocais, para ser degustado enquanto trabalham ou executam tarefas domésticas. E aí há sons para todos os gostos: o canal Fruits Music, por exemplo, possui playlists com sons de chuva, temas para dormir ou sucessos pop rearranjados. Um deles é Running Up That Hill, de Kate Bush, renascido por conta do seriado Stranger Things, da Netflix.

Entre os criadores de canções lo-fi, há, porém, quem torça o nariz para a simples reprodução de sons da natureza, adotada pelo Fruits Music, canal desenvolvido pelo DJ holandês Steve Void. O que há, afinal de contas, de inovador e musical numa reunião de sons de chuva ou barulhos da natureza?

Outra “pegadinha” do popular Fruits Music é que, como o Spotify contabiliza o stream a partir de 30 segundos de audição, o selo dividiu as canções em áudios de 30 segundos para aumentar seus ganhos com direitos autorais. Cada som de chuva, cada ruído dura o suficiente para ser contabilizado pela plataforma de streaming como uma canção – e, assim, render direitos autorais.

A popularidade do gênero começou a crescer com a pandemia. O guitarrista e produtor Pe Lu, ex-integrante do grupo de rock juvenil Restart e do duo de música eletrônica Selva, foi um dos que buscaram o lo-fi para tentar se acalmar.

Ao vivo. colours in the dark, nome artístico de Daniel Sander tem participado de vários eventos – Imagem: Mônica Ramalho e Colours In The Dark

“Comecei por hobby e acabei conhecendo uma cena em ebulição”, diz ele, que criou o selo Lofi Land. Pe Lu lançou, dois meses atrás, a coletânea Brasil ­Goes ­Lo-Fi, composta basicamente de releituras – entre as quais, as de canções como Água de Beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a Mulheres, de Martinho da Vila.

Se Pe Lu veio do rock, Gabriel ­Moraes, o Epifania, veio do hip-hop, enquanto ­Yuri Bastos tem origem na música clássica. “Comecei no rap em 2015, mas queria instrumentais originais para colocar meus versos. Conheci então o lo-fi ­hip-hop através do Nujabes e me apaixonei pela sonoridade”, diz Epifania.

Já Bastos tenta aproximar o lo-fi da música barroca, se não pela melodia, pela natureza do trabalho. “A exemplo de compositores barrocos, trabalhamos por encomenda e nossa música serve como acompanhamento”, diz. “Já as produções com ruídos nos aproximam da música contemporânea, de um John Cage.”

A variedade do lo-fi é tamanha que até para causas sociais o gênero tem servido. O projeto Space Animals, formado pelos roqueiros Henrique Roncoletta e Julio Pires, pretende reverter a renda arrecadada nas plataformas de streaming para ONGs de proteção aos animais.

O lo-fi brasileiro tem também alguns selos. Um deles é o Tangerina Music, de propriedade de Fabio Bittencourt, que tem 253 playlists, de música para hotéis e relaxamento até coletâneas com artistas de destaque. “Fomos o primeiro selo a ter um trabalho focado em produtores brasileiros”, diz Bittencourt. “São mais de 500 faixas lançadas desde 2019.”

Outros selos de destaque são o Calmas Records, focado no hip-hop, o Cold Soda e o Sleep Tales. Este último – conforme o nome indica, dedicado a canções para dormir – está entre os três principais do gênero no mundo e conta com cerca de 50 milhões de streams mensais. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Tangerina, o público de lo-fi é de maioria masculina (55%) e de jovens entre 23 e 34 anos (57%).

Boa parte dos artistas consegue viver da renda dos streams e vários deles não ligam nem um pouco para o fato de serem anônimos. “A gente consegue ter a quantidade de streamings próxima de artistas do mainstream, mas sem precisar virar uma celebridade”, diz Bastos. “Para alguém que, como eu, experimentou o sucesso popular, é interessante fazer algo nos bastidores”, repete Pe Lu.

Mas a história do show biz professa que, pouco a pouco, uma história de sucesso acaba sempre por levar a certa idolatria. A performance de colours in the dark, Linearwave e outros músicos do ­lo-fi no festival de rock Polifonia, em 2021, mostrou que o anonimato começa a deixar de ser uma marca do estilo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A onda do som relaxante “

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