Cultura
Na universidade, o mito de Oxum
A escritora Conceição Evaristo torna-se catedrática do Instituto de Estudos Avançados da USP


Nossos poemas conjuram e gritam (…) (…) o que os livros escondem/ as palavras libertam (Poemas da Recordação, Editora Malê, 2017)
Criada em 2015, a Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, fruto de uma parceria entre o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e o Itaú Cultural, teve como primeiro titular Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022), diplomata e filósofo de raiz iluminista, profundo conhecedor de Kant.
Não quer dizer pouco, dentro do percurso da USP, a chegada da escritora e poeta Conceição Evaristo a essa mesma cátedra. “A primeira coisa que apresento, quando chego aqui, é esse corpo negro, de 75 anos, com os cabelos brancos, com a minha identidade”, diz ela, com uma ponta de orgulho pessoal, mas, sobretudo, com uma sensação de vitória coletiva, nesta entrevista concedida na sala de reuniões do instituto.
“Não é só uma vitória minha ou da minha carreira. O importante, ao chegar a um lugar como este, é você afirmar que este espaço é seu e dos outros. Ocupo este lugar depois de ter sido repudiada, por exemplo, pela ABL”, relembra, referindo-se ao fato de que, em 2018, perdeu para o cineasta Cacá Diegues a vaga na Cadeira de nº 7 da Academia Brasileira de Letras.
Conceição é mestre em literatura brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e autora de sete livros – entre eles, Olhos d’Água (Pallas, 2014), vencedor do Prêmio Jabuti, e Becos da Memória (Pallas, 2017). Na terça-feira 27, ela abrirá sua gestão à frente da Cátedra com um encontro intitulado Escrevivência: Sujeitos, Lugares e Modos de Enunciação – Corpus Literário em Diferença.
Esse conjunto de palavras abriga não apenas sua trajetória, mas seu próprio modo de ser e viver. E é por isso que, ao explicar seu projeto para o IEA, ela fala, primeiro, da emoção que sentiu durante o processo seletivo para a escolha dos três mestrandos que trabalharão com ela na USP.
“Se inscreveram muitas mulheres, e muitas mulheres negras. E cada uma dessas moças que conversava comigo parecia ter, sobretudo, uma sensação de acolhimento”, pontua, sabedora do que significa a sensação de não pertencimento no espaço universitário. “Minha presença vai ser importante para criar um solo onde outras vão pisar.”
Nascida em uma favela de Belo Horizonte, em uma família de nove irmãos, Conceição concluiu o Ensino Médio aos 25 anos, trabalhando como empregada doméstica, e entrou na faculdade aos 41, quando já era professora da rede pública de ensino, no Rio.
“A primeira coisa que apresento, quando chego aqui, é este corpo negro, de 75 anos”, afirma
As coisas que sentiu, ouviu e viu ao entrar no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro são, justamente, aquelas que espera, um dia, serem superadas. “Você tem de escolher entre trabalhar e estudar”, lembra-se de ter ouvido de uma professora. “Gostei muito de você. Você é muito educada”, disse-lhe outro.
O dado mais recente divulgado pelo IBGE aponta que, em 2018, o número de negros nas universidades públicas brasileiras havia, pela primeira vez, ultrapassado o de brancos, alcançando 50,3% do total. Mas, completados dez anos da Lei de Cotas (2012), marco das ações afirmativas aplicadas à educação, sabe-se que, vencida a barreira da entrada, muitos cotistas seguem sem conseguir vencer a barreira da permanência.
“Um negro, ao entrar na universidade, precisa, o tempo todo, reformular seu emocional. O racismo nos ataca todos os dias”, afirma, dizendo que basta ela sair do IEA ou de qualquer outro ambiente ligado ao mundo cultural e intelectual ao qual pertence para senti-lo. “Me lembro que, na abertura da Ocupação em minha homenagem, no Itaú Cultural, eu era a rainha da festa. Quando atravessei a Avenida Paulista e entrei no shopping, os seguranças me seguiram.”
A chegada de Conceição à Cátedra sucede, no IEA, a presença, nesse mesmo espaço, da ativista Eliana Sousa Silva, diretora fundadora da Redes da Maré, no Rio. Eliana assumiu a Cátedra em 2018 e começou ali a problematizar a ausência da periferia na USP e reivindicando a centralidade de saberes que não aqueles estabelecidos pelo cânone europeu.
Conceição dá materialidade a essa reivindicação. Além de autora premiada, Conceição é uma pesquisadora que faz questão de dizer que sua subjetividade lhe permite ler Graciliano Ramos ou Clarice Lispector de forma diversa daquela dos brancos. “Eu trago para cá um dialogismo com essa episteme marcadamente branca e masculina”, diz, colocando a conversa no campo teórico.
E quem ouvi-la falar da construção do personagem Casimiro, de São Bernardo, entenderá o que é essa episteme branca que, por décadas, foi a única das universidades brasileiras. Conceição propõe, além de novas interpretações possíveis para autores brancos, diferentes leituras de autores negros consagrados, como Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto.
O ato da escrita como forma de resistir e existir também deve permear sua presença nesse espaço por tanto tempo fechado para pessoas com a mesma origem que a sua. A USP, inclusive, só aderiu à Lei da Cota em 2018, e de forma escalonada.
O conceito de escrevivência, explica ela, é a escrita de si. E difere da autoficção, tão em voga na década passada. “Nesse caso, o texto, muitas vezes, se esgota na vivência do próprio autor. É uma escrita, quase sempre, narcísica. A nossa, não. O mito de Narciso não cabe em nossa face, porque nossa beleza não é refletida no espelho do narcisismo”, diz. “Nossos mitos são outros. Oxum, quando se contempla no espelho, vê atrás dele o inimigo.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Na universidade, o mito de Oxum”
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