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A atual política fiscal reforça as desigualdades, mas a maior parte dos candidatos nem sequer a menciona

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Jabuticaba. Sob a tutela de Arthur Lira, o “orçamento secreto” drena recursos públicos para os redutos eleitorais dos parlamentares, sem qualquer critério - Imagem: Paulo Sérgio/Ag. Câmara
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Vivemos, oficialmente, a campanha eleitoral – apesar de as eleições já terem tomado as ruas e os debates no Brasil muito antes. Embalada pela expectativa da disputa aos cargos do Executivo e Legislativo no País, a discussão em torno do orçamento público ganhou força recentemente, em meio às notícias sobre o “orçamento secreto” e o cumprimento do teto dos gastos. Para além desses assuntos pontuais, a política fiscal é uma pauta que merece uma análise constante e aprofundada, sobretudo neste momento que a nação experimenta. Afinal, a alocação de recursos perpassa por todos os aspectos da vida de uma população, pois é condição ­sine qua non para a realização dos direitos humanos por meio de políticas públicas.

Hoje, vivemos uma política fiscal restritiva, que reforça as desigualdades, seja transferindo o dinheiro público para a base do governo, por meio do orçamento secreto, seja dificultando o acesso da população aos direitos, por meio do teto dos gastos e outras regras fiscais. Apesar da importância da política fiscal para a execução das políticas públicas, não há espaço para a participação social. Nesse sentido, o período que antecede as eleições apresenta-se como oportunidade para alterar este quadro, dada a importância do orçamento na garantia de direitos.

Para contribuir com as discussões sobre esse tema, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) preparou o documento Eleições 2022: Como Elaborar uma Política Fiscal que Garanta Direitos Sociais?, que está sendo apresentado às candidaturas, tanto as do Executivo quanto as dos cargos legislativos. Antes de tudo, urge barrar o subfinanciamento das políticas sociais, a partir da derrubada da emenda do teto dos gastos, que limita as despesas da União à reposição da inflação, impedindo que o orçamento responda ao aumento da arrecadação, crescimento econômico ou crises. ­Faz-se necessário ainda: a revisão da meta de resultado primário, a impossibilitar respostas do governo às crises econômicas, e também da regra de ouro, bem como a eliminação do orçamento secreto, o controle do choque de juros, a retomada do planejamento das políticas públicas e a promoção de uma reforma tributária solidária e sustentável.

O subfinanciamento da saúde, educação, ciência e outras áreas é resultado da crença cega na austeridade

No orçamento da Saúde, nos últimos três anos, foram perdidos mais de 10 bilhões de reais, se descontados os gastos emergenciais autorizados pelo Congresso para o enfrentamento à Covid-19, confirmando a situação de desfinanciamento do setor. É preciso dar prioridade à alocação de recursos para garantir, de forma imediata, o direito de acesso aos bens e serviços de maneira não discriminatória. Deve-se ainda priorizar a pesquisa científica, de acordo com as necessidades da saúde pública, e aumentar os impostos sobre substâncias nocivas, assim como eliminar benefícios fiscais para produtos prejudiciais à saúde.

A situação da educação brasileira piorou com a pandemia, quando um em cada cinco alunos do Ensino Médio da rede pública ficou sem aula. Não houve, porém, a alocação de novos recursos, mesmo com todos os desafios impostos por dois anos de Covid-19. A execução financeira do Ministério da Educação nos primeiros três anos do governo Bolsonaro segue em declínio, passando de 122,75 bilhões de reais, em 2019, para 114,79 bilhões no ano passado.

As mulheres também precisam estar incluídas na alocação de recursos públicos. Os recursos disponíveis para esse grupo da população estão muito aquém do desafio imposto pelos indicativos de violência de gênero, que nos coloca no vergonhoso quinto lugar no ranking mundial de feminicídios. A queda real dos recursos para políticas para mulheres, no período de 2014 a 2019, foi de 75%, desmontando a maior parte das políticas federais específicas para esse grupo.

Descaso. A execução financeira do Ministério da Educação caiu de 122,75 bilhões de reais, em 2019, para 114,79 bilhões no ano passado – Imagem: Luci Sallum/Prefeitura de Contagem/GOVMG

Para reverter esse quadro, é preciso institucionalizar orçamentos com perspectiva de gênero e maximizar os recursos disponíveis para investir em serviços públicos de qualidade sensíveis às mulheres, como a economia do cuidado, a saúde e proteção social. Além disso, é fundamental a adoção de programas que promovam o emprego e a renda para as mulheres trabalhadoras.

As populações negra, indígena e quilombola são as mais prejudicadas pela austeridade. Somente de 2019 a 2021, foi gasto oito vezes menos recursos para a promoção da igualdade racial, na comparação com o período anterior. Nos últimos três anos, 45% dos recursos despendidos na ação orçamentária destinada a proteger e demarcar os territórios indígenas foram atribuídos a indenizações e aquisições de imóvel – medidas que favoreceram os ocupantes, não os indígenas.

A austeridade fiscal também impacta diretamente as políticas urbanas, tendo em vista o corte de recursos destinados às cidades para promoção de políticas de habitação, saneamento e mobilidade. Em 2021, os valores gastos para habitação representaram apenas um quarto do total autorizado no orçamento, e os recursos da subfunção transportes coletivos urbanos caíram 70% entre 2019 e 2021, passando de 1,2 bilhão de reais para parcos 368 milhões. Para garantir o direito à cidade e à moradia, o Inesc recomenda, além de recomposição orçamentária, a necessidade de medidas fiscais que promovam um sistema habitacional inclusivo e o uso da propriedade em sua função social, evitando a especulação e o acúmulo excessivo de riqueza. Para isso, é necessário fortalecer a arrecadação de tributos sobre os donos de terras improdutivas e rever os tratamentos fiscais preferenciais aos proprietários, em comparação aos inquilinos.

Na pandemia, um em cada cinco alunos do Ensino Médio ficou sem aula. Em vez de aumentar, os gastos diminuíram

Os números irrisórios do gasto com a área ambiental são parte de outro cenário preocupante, cuja expressão mais evidente é o maior aumento do desmatamento dos últimos 15 anos. Em 2021, o orçamento executado para essa área foi o menor dos últimos três anos, com apenas 2,5 bilhões de reais para serem gastos por todos os órgãos ambientais, o que equivale a menos da metade do valor despendido no ano de 2014. Além de reforçar o caixa, é preciso assegurar que, ao permitir a exploração de recursos naturais, uma parte da geração de riqueza seja tributada e destinada à transição para um modelo econômico mais sustentável, com a adoção de políticas econômicas e industriais visando a diversificação produtiva. Também é importante acabar com incentivos fiscais para fontes de energia não renováveis e garantir a proteção da população de menor renda.

As políticas voltadas para crianças e adolescentes têm sido enfraquecidas sistematicamente nos últimos anos. Em 2021, os recursos executados para assistência desse grupo da população diminuíram 28,1%, em comparação com 2019. Devemos recordar que o aumento da pobreza e da fome impacta proporcionalmente o dobro de crianças em relação aos adultos, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef. Para reverter essa situação, é necessário priorizar a alocação e execução de recursos nas áreas da infância e da adolescência, com foco na redução das desigualdades, financiando uma proteção social acessível, suficiente e adequada para atender às necessidades específicas desse público, além de garantir a intersetorialidade entre as políticas de atendimento para a proteção integral.

A política fiscal é um instrumento fundamental para a garantia de direitos, que vêm sendo reduzidos em razão de tantos cortes nos gastos. Apesar disso, ela não aparece em grande parte dos programas de governo nem nas propostas dos candidatos e das candidatas a cargos eletivos. Tratar esse tema nas eleições de 2022 é garantir que as ideias para um país mais justo e inclusivo virem realidade. •


*Luiza Calvette é cientista política e consultora do Inesc.

Livi Gerbase é mestre em economia política internacional pela UFRJ e assessora política do Inesc.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.

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