Mundo
Aos olhos de Elizabeth
O exercício do poder brando da rainha que sobreviveu a 15 primeiros-ministros britânicos


Durante sete décadas, ela testemunhou intimamente mudanças de poder em todo o mundo. Ao chegar ao trono na era distante da Rússia de Stalin, Elizabeth II reinou através de guerras frias e quentes e através de mudanças econômicas abrangentes. Ela presidiu a retirada da Grã-Bretanha do império e seu surgimento como potência moderna em rede, mas também sua luta para forjar uma identidade pós-Brexit e o início de um doloroso acerto de contas com o colonialismo. Com ela vai-se uma memória institucional única, um reservatório de percepções compartilhadas com 15 primeiros-ministros.
A relação entre o monarca constitucional e o político eleito é estranha, em parte deferência e protocolo, em parte uma curiosa intimidade. Tony Blair disse que ela era a única pessoa com quem ele falava livremente, sabendo que não vazaria, e a própria rainha uma vez descreveu sua função como “uma espécie de esponja” que absorvia confidências. Mas também, acrescentou, ocasionalmente envolvia oferecer aos governos um ponto de vista diferente: “Talvez eles não tivessem visto por esse ângulo”. Ela foi uma amante do poder brando e sabia quando projetar a plena majestade régia e quando bancar a avó gentil, e um recurso diplomático único. Às vezes, conseguia defender a posição da Grã-Bretanha perante um chefe de Estado estrangeiro melhor do que qualquer político eleito. (Compare o relacionamento espetado de Emmanuel Macron com a primeira-ministra Liz Truss e o calor genuíno do tributo do presidente francês à rainha.) Nunca partidária, ela era, no entanto, essencial para o corpo político, e seus relacionamentos com sucessivos primeiros-ministros servem para contar uma história do que a Grã-Bretanha se tornou.
Ela reinou por guerras frias e quentes e testemunhou a decadência do império
Em fevereiro de 1952, uma nação que buscava sua posição no mundo pós-Guerra ganhou uma rainha de 25 anos que ainda procurava a sua. Ela apoiou-se fortemente no conselho de Winston Churchill, meio século mais velho. Depois que ele se aposentou, em 1955, ela lhe escreveu que nenhum outro primeiro-ministro poderia “manter o lugar” de seu primeiro. O segundo, sir Anthony Eden, levaria o país à humilhação nacional.
A fracassada invasão do Egito, hoje conhecida como a crise do Suez, foi uma dura lição de estadismo em tempo de guerra e do declínio da influência da Grã-Bretanha sobre suas antigas colônias. Sob Harold Macmillan, que se tornou primeiro-ministro em 1957 e com quem a rainha desenvolveu um relacionamento próximo, ela supervisionou o desmanche do império e a fundação da Commonwealth, a Comunidade Britânica. Mas foi seu primeiro primeiro-ministro trabalhista, Harold Wilson, quem trouxe o “vento da mudança” – a frase de Macmillan, cunhada para sinalizar o fim da resistência da Grã-Bretanha aos movimentos de independência – de volta para casa.
O passado de Wilson era mais humilde do que o de seu antecessor, sir Alec Douglas-Home, mas ele desfrutava de um relacionamento descontraído com a rainha. Sua era foi a da corrida espacial, do “calor branco” da tecnologia e da libertação pessoal: a descriminalização da homossexualidade, a legalização do aborto e a cultura dançante dos anos 1960 que arriscavam fazer a realeza parecer rígida. Em 1969, a rainha permitiu que câmeras de tevê entrassem no Castelo de Windsor para um documentário íntimo, mostrando o lado humano da família. A era da mística e da distância estava terminando.
Último ritual. Liz Truss, substituta de Boris Johnson, recebeu “a bênção” poucos dias antes da morte da monarca – Imagem: Jane Barlow/Gabinete da Primeira Ministra
Em 1970, Ted Heath sucedeu a Wilson, em circunstâncias estranhamente familiares: agitação industrial, inflação disparada, choque no preço do petróleo e escassez de energia. A rainha quis reconhecer essas dificuldades em sua mensagem de Natal de 1973, mas Heath a vetou. O novo rei poderá ter mais margem de manobra neste ano? O curto retorno de Wilson em 1974 deu lugar, em 1976, a James Callaghan, primeiro-ministro tanto no auge do jubileu de prata da rainha quanto nos baixos do inverno de descontentamento, mas ainda supostamente um dos favoritos dela. Em 1979, veio, porém, um marco: sua primeira primeira-ministra, Margaret Thatcher.
Apesar de muita especulação sobre as diferenças pessoais das duas – Thatcher claramente não gostava de se arrastar pelas charnecas de Balmoral –, a verdadeira tensão era sobre políticas. A relutância de Thatcher em aumentar as sanções contra a África do Sul na era do apartheid enfureceu os líderes da Commonwealth, e a rainha supostamente ficou do lado deles. A queda de Thatcher, em 1990, viu lutas políticas mais amargas sobre a Europa com John Major, e uma crise da libra esterlina que culminou no crash da Quarta-feira Negra. Mas a rainha apreciou o apoio de Major durante seu próprio annus horribilis de 1992, com o casamento do príncipe Charles a se desfazer e alguns a perguntar se a monarquia poderia sobreviver. Cinco anos depois, a morte da princesa Diana de Gales trouxe essas questões de volta.
Um novo primeiro-ministro, Tony Blair, captou habilmente o clima de tristeza pela “princesa do povo”, mas a rainha parecia muito distante e as relações entre o número 10 de Downing Street e o palácio se deterioraram. Espalharam-se rumores de que a rainha estava descontente com os planos do Novo Trabalhismo de proibir a caça à raposa e reformar a Câmara dos Lordes. As coisas não ficaram muito mais fáceis depois que Gordon Brown sucedeu a Blair em 2007, embora a rainha estivesse profundamente interessada na crise bancária e fizesse perguntas pontuais sobre falhas nas previsões econômicas enquanto visitava a London School of Economics. Foi, porém, a convulsão constitucional sob David Cameron que realmente testou as relações entre a monarca e o Estado.
De Churchill a Liz Truss, a monarca compartilhou os problemas do Parlamento e da própria família
As coisas começaram bem, com uma visita à Irlanda em 2011, na qual Elizabeth reconheceu abertamente os sofrimentos sob o domínio britânico. Ela corajosamente participou de um esquete de James Bond na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do ano seguinte, sugerindo uma monarca e um país à vontade consigo mesmos. Dois anos depois, veio o referendo da independência escocesa, após o qual Cameron foi ouvido contando que ela havia “ronronado de prazer” com o resultado – uma grave violação de sua neutralidade política. Pior ainda, antes do referendo do Brexit, uma ministra anônima disse ao jornal Sun que ela apoiava o “Sair”. Em 2016, quando Theresa May sucedeu a Cameron, o país estava amargamente dividido.
Ao buscar esculpir um novo papel pós-Brexit para a Grã-Bretanha no mundo, May apoiou-se fortemente no poder brando real. Os então duques de Cambridge – William e Kate – lideraram uma ofensiva de charme nas capitais europeias e a presença da rainha serviu para suavizar uma difícil visita de Estado, em 2019, de Donald Trump, que ansiava por sua aprovação. Quando May, politicamente atrapalhada, foi deposta naquele verão por Boris Johnson, algo rachou. Ao tentar forçar seu acordo do Brexit, Johnson envolveu a rainha numa prorrogação do Parlamento mais tarde considerada ilegal. Ela lamentou sozinha em um banco socialmente distanciado no funeral de seu amado marido, um dia depois que assessores de Johnson fizeram uma festa ruidosa que quebrou o lockdown. A disposição obediente da rainha a sofrer as privações de uma pandemia ao lado de seu povo contrastou dolorosamente com o que agora representava a liderança política.
O primeiro. Elizabeth foi coroada quando Churchill comandava o Parlamento. Ela tinha 25 anos, ele, 75 – Imagem: Arquivo/AFP
A monarquia teve, porém, seus próprios problemas nesse período, desde a desgraça pública do príncipe Andrew até denúncias de racismo real após o rompimento do príncipe Harry com a família. Enquanto isso, a malvista turnê caribenha dos Cambridge nesta primavera despertou demandas por reparações pela escravidão, raiva pelo escândalo de imigração do navio Windrush (que eclodiu no governo de May) e conversas sobre a Jamaica se tornar uma república. De repente, a história parecia alcançar uma monarquia que há muito a havia superado.
O ato público final da rainha moribunda foi o beijo de mãos com Liz Truss, o que selou uma última transferência ordenada de poder político. O círculo é ininterrupto. A linha continua sob nova primeira-ministra e novo rei. Mas quem sabe aonde isso levará daqui a sete décadas? •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Aos olhos de Elizabeth”
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