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Chega de ódio

Após o atentado contra Cristina Kirchner, o povo sai às ruas para dar um basta ao extremismo

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Por um fio. O brasileiro apertou o gatilho a poucos centímetros da ex-presidente. Por sorte, a pistola falhou - Imagem: Emiliano Lasalvia/AFP e Redes sociais
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Horas após o promotor ­Diego Luciani denunciar ­Cristina Kirchner, opositores do governo argentino se dirigiram à porta do edifício onde mora a ex-presidente e atual vice de Alberto Fernández, no bairro da Recoleta, em Buenos Aires, para pedir sua condenação. Em meio ao panelaço, a turba a insultava: “Ladra, ladra!” Convocada, a militância kirchnerista não tardou a reagir. Houve confronto e a polícia precisou intervir para separar os grupos. Em menor número, os opositores se retiraram. Os apoiadores permaneceram em vigília e jamais arredaram pé do local. E foi justamente esse cordão de proteção que favoreceu a aproximação de Fernando Andrés Sabag Montiel, de 35 anos, o homem que tentou assassinar Cristina em frente à sua casa.

A denúncia contra a ex-presidente foi apresentada à Justiça em 23 de agosto. Em um processo com a marca do lavajatismo brasileiro, Luciani pediu a condenação de Cristina a 12 anos de prisão – exatamente o mesmo período que ela e seu falecido marido, Néstor Kirchner, estiveram no poder –, e a inabilitação perpétua para cargos públicos por conta do bilionário prejuízo causado aos cofres públicos pelo suposto direcionamento de licitações de obras públicas, sobretudo em rodovias de Santa Cruz, seu berço político.

Trata-se, nas palavras de Fernández, de uma “perseguição judicial e midiática” contra sua vice, que tem por objetivo “tornar Cristina Kirchner inelegível para as eleições, a exemplo do ocorrido com outros líderes populares, como o ex-presidente Lula”. A espetaculosa acusação contribuiu para acirrar ainda mais os conflitos entre opositores e governistas, estes últimos desgastados pela grave crise econômica enfrentada pelo país, com uma inflação acumulada de 71% no período de 12 meses até julho.

De nacionalidade brasileira, o autor do atentado vive na Argentina desde os 6 anos de idade. Montiel trabalhava como motorista de aplicativo e foi detido, em março do ano passado, por porte de arma branca. À época, ele foi abordado pela polícia por circular com um ­Chevrolet ­Prisma sem a placa traseira, segundo ele caída em um “acidente de trânsito”. Ao abrir a porta para pegar a documentação do carro, uma faca de 35 centímetros caiu no chão. Sem condenações anteriores, teve a arma apreendida, mas não chegou a ficar preso pela contravenção. Os policiais deveriam ter sido mais cautelosos diante das evidências de sua participação em grupos extremistas.

Montiel ostenta diversas tatuagens associadas ao nazismo. Em seu cotovelo, há um sol negro, representação comum entre os adoradores de Adolf Hitler. As runas sobrepostas foram adotadas por ­Heinrich Himmler, o temido chefe da SS e da ­Gestapo, organização paramilitar ligada ao Partido Nazista e a polícia secreta do regime, respectivamente. Na mão direita, possui, ainda, o desenho da cruz de ferro, condecoração militar existente desde a Prússia e mantida no Terceiro ­Reich. Além disso, vários familiares possuem problemas na Justiça. Seu pai, o chileno Fernando Ernesto Montiel Araya, para citar um exemplo, foi expulso do Brasil em 2020, após sofrer condenações por furto, estelionato e falsificação de documentos.

Fernando Montiel, o autor do ataque, coleciona tatuagens ligadas ao nazismo

Foi a tatuagem da cruz de ferro na mão que permitiu às autoridades confirmarem que o homem detido por apoiadores de Cristina Kirchner era, de fato, o autor do atentado. Em meio à multidão, ­Montiel aproximou-se sorrateiramente, apontou a arma contra a ex-presidente e apertou o gatilho ao menos uma vez. Estava a poucos centímetros do alvo. Em um dos vídeos que registrou o momento do ataque, é possível ouvir claramente o ruído do disparo frustrado. Embora a quadragenária pistola Bersa estivesse municiada com cinco balas, nenhuma delas foi acionada, provavelmente por causa de uma trava de segurança que o extremista esqueceu de desativar. A arma de fabricação argentina, com numeração parcialmente raspada, foi encontrada no chão. Pertencia a um antigo vizinho de Montiel, já falecido. As autoridades ainda não sabem, porém, se foi roubada ou presenteada.

O brasileiro recusa-se a depor. No apartamento do motorista de aplicativo, localizado no município de San Martín, na região metropolitana de Buenos Aires, a Polícia Federal da Argentina encontrou duas caixas de munição marca Magtech, calibre 9 mm, com 100 balas ao todo. Ao tentar desbloquear o celular do criminoso, peritos aparentemente cometeram um erro e resetaram o aparelho para as “configurações de fábrica”, segundo o jornal Página 12. Responsável pelo caso, a juíza María Eugenia Capuchetti ordenou uma investigação paralela para apurar se o celular já estava com os dados apagados ou se o problema ocorreu por imperícia dos investigadores. Ao decretar a prisão da namorada de Montiel, a mitômana ­Brenda Uliarte, a magistrada decretou o sigilo do inquérito. A suspeita é de que ela tenha auxiliado Montiel, e não se descarta a participação de outros no atentado.

Inicialmente, a jovem declarou-se estarrecida com o ataque e disse que viu o namorado pela última vez dois dias antes do crime. Imagens de câmeras de segurança revelaram, porém, que ela mentiu a esse respeito. As suspeitas avolumaram-se após os investigadores identificarem um estranho comportamento de ­Brenda. Em entrevistas à mídia argentina, nas quais criticou os programas sociais argentinos por “estimular a vagabundagem”, ela se apresentava como ­“Ambar”. Esse era o alter ego virtual que ela escolheu para se apresentar em plataformas de streaming de conteúdo erótico. Como Lizz Manson, fingiu ter cometido suicídio, em uma rede social, por não “encontrar sentido na vida”. No LinkedIn, usava o nome verdadeiro, mas se apresentava como funcionária da Shell, ocupação desconhecida por seus familiares. Segundo o relato de um tio ao jornal La Nación, ela nem sequer havia concluído o ensino médio.

Embora lideranças da direita tenham criticado Fernández por decretar feriado na sexta-feira 2, para que centenas de milhares de argentinos pudessem sair às ruas em protesto contra o atentado e o clima de ódio político, a Câmara dos Deputados aprovou no dia seguinte uma moção de repúdio ao ataque, com votos de governistas e opositores. Sinal de maturidade. O texto exorta o povo a buscar “caminhos que levem à paz”.

O papa Francisco e líderes de todo o mundo também manifestaram solidariedade a Cristina Kirchner. Por meio de nota, o Itamaraty disse que o Brasil repudia “qualquer forma de violência política”. Jair Bolsonaro, como previsto, evitou ao máximo emitir qualquer aceno à vice de um governo de esquerda. Provocado por jornalistas, disse já ter publicado “uma notinha”, em provável alusão ao texto do Ministério das Relações Exteriores. “Eu lamento. Agora, quando eu tomei a facada, teve gente que vibrou por aí”, esquivou-se. À época, convém lembrar, todos os presidenciáveis repudiaram o ataque cometido por Adélio Bispo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Chega de ódio”

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