Mundo
De frente para o inimigo
O esforço de civis e militares ucranianos para deter a ofensiva russa na região do Donbas


O médico veste seu jaleco branco pela primeira vez desde 1º de agosto. Naquele dia, o principal hospital civil de Mykolaiv foi atingido diretamente por um míssil de cruzeiro russo, que reduziu o centro de traumatologia a paredes carbonizadas e suas entranhas escancaradas, além de danificar o prédio principal o suficiente para desativar a farmácia no primeiro andar, o laboratório no segundo, o departamento de ginecologia no terceiro, o de urologia no quarto e centros de traumatologia no quinto.
Agora, enquanto as tropas ucranianas montam uma ofensiva há muito esperada contra os russos que ocupam a cidade vizinha de Kherson, o hospital reabre, com sua equipe reduzida. Perto das ruínas da farmácia, os restos retorcidos de leitos hospitalares jazem no asfalto, arremessados pela força da explosão do míssil. Os funcionários entram por uma porta improvisada com aglomerado, depois de passarem pelos esqueletos dos carros atingidos no ataque. “Recebemos nosso primeiro paciente desde a reabertura”, diz o médico, chefe do departamento de anestesiologia. “Um paciente com ferimentos na cabeça de uma explosão de mina, lesões de entrada e de saída no crânio. Vamos operar como se fosse um tumor cerebral.”
“Querem destruir o tecido das nossas vidas”, diz um médico
As batalhas por Mykolaiv e pela libertação de Kherson são cruciais para a defesa da Ucrânia na costa do Mar Negro. Esta cidade de estaleiros navais é a última barreira entre Kherson, 48 quilômetros a sudeste, e a estrada para Odessa, que efetivamente controla o mar.
Os russos tomaram Kherson nos primeiros dias da invasão e entraram em Mykolaiv, mas foram repelidos por uma audaciosa contraofensiva ucraniana. Mas a cidade é um fantasma de si mesma. Um silêncio sinistro envolve um verão chuvoso, há mais cães nas ruas cheias de crateras do que moradores desesperados ou imprudentes o suficiente para andar por elas. As vias de entrada e saída estão ocupadas por vários postos de controle. Calcula-se que cerca de metade da população tenha fugido depois dos terríveis bombardeios em junho e julho. Muitos dos 230 mil que permanecem são idosos e incapazes de sair.
Em todas as direções há restos de edifícios civis danificados. Na manhã de nossa visita, dois mísseis russos S-300 atingiram a entrada da Universidade Petro Mohyla do Mar Negro e destruíram 27 casas vizinhas. No fim de semana passado, mísseis russos erraram a principal ponte rodoviária que liga Mykolaiv a suas linhas vitais a oeste e a Odessa.
À medida que a contraofensiva rumo a Kherson começa, os médicos, enfermeiros, paramédicos e auxiliares restantes em Mykolaiv trabalham mais que nunca. Antes da guerra, diz o médico, “lidávamos principalmente com acidentes de trânsito e coisas parecidas. Agora são explosões de minas e ferimentos causados por ataques de mísseis ou foguetes. Quando há combate severo ou muitos bombardeios, temos uma carga de trabalho enorme. Desde o fim de fevereiro, transfundimos meia tonelada de plasma”.
Fonte: Institute for The Study of War com AEI’s Critical Threats Project
O golpe direto veio em 30 de julho, depois de duas noites de bombardeio feroz. “Foi uma noite terrível”, lembra o médico, “muito assustadora para todos nós, com um número enorme de internações.” No dia seguinte ao ataque ao hospital, bombas de fragmentação russas atingiram a rodoviária, matando sete civis e ferindo 14. “Estão destruindo hospitais, a universidade, escolas que ficam vazias durante o verão, o porto e os estaleiros. Eles querem destruir o tecido de nossas vidas. Atingiram uma refinaria de petróleo em frente à minha casa. Até o centro de treinamento dos bombeiros foi atingido.”
O médico trabalha aqui há 14 anos. Seu consultório – “onde dormi nos primeiros três meses da guerra” – está cheio de medicamentos doados. “Estamos bem abastecidos, pois a diáspora é organizada e há uma boa rede de voluntários no exterior. O problema é a falta de pessoal. Somos poucos. Estamos muito unidos, mas há depressão entre os funcionários.”
Na saída de Mykolaiv em direção a Kherson, chegamos a uma base da 59ª Brigada de forças ucranianas, instalada num parque industrial. A partir daqui, é uma viagem para sudeste em direção à linha de frente, com o coração na boca, em meio a postos de controle na periferia da cidade, barreiras antitanque e um cruzamento ferroviário meio bloqueado por um vagão de mercadorias aparentemente neutralizado. Em seguida, subimos a alça de acesso à autoestrada, marcada “Kherson”, em direção às linhas russas agora sob ataque. Ao longo da estrada deserta há um posto de gasolina convertido em depósito paramédico avançado. Uma velha ambulância blindada está estacionada ao lado de duas novas doadas pela França. Dois paramédicos estão de plantão, prontos para responder a qualquer chamada da linha de frente. Por coincidência, Teresa Hritsik e Anatoly Sobolevskiy vêm de Vinnytsia, no oeste da Ucrânia, de onde se ofereceram para essa posição como médicos civis, mas sob comando militar. “Nossa principal tarefa é a evacuação mais rápida possível de soldados e civis feridos, que tratamos na ambulância e entregamos aos hospitais militares ou civis em Mykolaiv”, diz Sobolevskiy. “Os médicos do exército estão nas trincheiras”, acrescenta, “e geralmente fazem as evacuações primárias, embora, às vezes, tenhamos uma situação militar na zona vermelha bem perto daqui e nos encontremos na linha de frente.”
“Os russos não diferenciam militares de civis”, diz um voluntário socorrista
Mais próximo do campo de batalha, diz Hritsik, a maioria dos civis foi embora. “Mas há agricultores e outros idosos que não querem sair, ou não podem e não têm para onde ir. Às vezes, eles são atingidos, às vezes são pegos nos ataques aos nossos militares, mas de qualquer forma são prisioneiros do combate. Tem um homem lá que não vai embora porque espera o filho voltar de Mariupol.” Há um silêncio, prenhe de nosso entendimento tácito de que esta poderá ser uma espera sem-fim. Voluntários entregam provisões aos civis e “nossos soldados frequentemente compartilham suas rações”, afirma o voluntário. “Tivemos de evacuar três deles na semana passada”, emenda Sobolevskiy, “uma mãe e dois filhos, claramente visados. Os russos não veem qualquer diferença entre militares e civis: essas pessoas não são ‘efeitos colaterais’, são alvos desta guerra.”
“Antes do conflito”, diz Hritsik, “eu era uma médica de artrite. Apresentei-me como voluntária em março, ao ver os rostos de nossos soldados voltando do front para Vinnytsia, ambulâncias nas estações de trem, hospitais superlotados… Então me voluntariei para a frente, senti a necessidade, não poderia ajudar de outra forma. Se pudermos ser úteis, devemos ser.”
Sobolevskiy era funcionário da alfândega na fronteira da Ucrânia com a Moldávia, no serviço K-9, e lidava principalmente com contrabandistas de narcóticos e álcool, com treinamento em primeiros socorros. “Tentei proteger meu país em tempos de paz”, argumenta, “agora devo fazê-lo em tempos de guerra.”
Em um silêncio momentâneo e nervoso, há tempo para ouvir sobre um drama que abalou Sobolevskiy mais do que ele consegue dizer: “Meu cachorro labrador Saltan se perdeu e foi embora em Kherson, em 24 de fevereiro, sob ocupação”.
Escombros. A universidade também não resistiu às investidas das tropas – Imagem: Universidade de Mykolaiv
“Saltan tinha um medalhão com um número de telefone, e alguém o encontrou dois meses e meio depois, faminto, escondido nas florestas. Recebi uma ligação e quem o achou providenciou para que ele fosse entregue em Kherson. Entrei em contato com uma equipe de meus colegas K-9. A essa altura, havia menos rotas de evacuação, mais perigosas, mas por meio de uma cadeia de contatos Saltan foi entregue no território livre. Ficamos completamente histéricos quando ele apareceu, minha esposa, eu e Saltan.”
Duas explosões enormes e profundas sacodem o ar da tarde, a uma distância aproximada de 5 quilômetros. “Bombas de fragmentos disparadas do mar”, diz Sobolevskiy, com uma expressão grave. Continuamos a falar sobre Saltan. Três minutos depois, uma salva tripla de explosões semelhantes, muito mais próximas e mais fortes. As expressões nos rostos dos médicos e do major mudam imediatamente. “Nós vamos por aqui”, diz Sobolevskiy, com uma decisão repentina, ao apontar para as detonações, e “vocês vão para lá”, apontando para Mykolaiv. Depois de apertos de mãos e um aceno, obedecemos, seguindo o jipe de escolta militar em velocidade. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De frente para o inimigo “
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