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A escritora e seus fantasmas

Em Manifesto, Bernardine Evaristo, primeira autora negra a ganhar o Booker Prize, esmiúça a criação literária e fala sobre política e perseverança

A escritora e seus fantasmas
A escritora e seus fantasmas
Viagem de descoberta. A autora inglesa de origem nigeriana venceu o prêmio em 2019, por Garota, Mulher, Outras. Em seu novo livro, lançado agora no Brasil, ela conduz o leitor por sua lenta, mas resoluta, caminhada até o topo - Imagem: Jennie Scott
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Bernardine Evaristo sempre sonhou ganhar o Booker ­Prize. Quando Lara, roman­ce em versos que ficcionaliza a história de sua família, foi publicado, em 1997, ela escreveu uma nota dizendo que um dia receberia o prestigioso prêmio. “Uma louca fantasia, porque eu estava tão longe de ganhá-lo quanto poderia estar. No entanto, tinha visto como ganhar esse prêmio podia melhorar a carreira dos escritores”, diz ela, em Manifesto – Sobre Nunca Desistir, livro de memórias sobre perseverança.

Mais de 20 anos depois, em 2019, ­Bernardine ganharia o Booker por ­Garota, Mulher, Outras (Companhia das Letras, 2020), romance de múltiplas vozes sobre a feminilidade negra britânica. Mas o prêmio foi dividido com ­Margaret Atwood. A decisão gerou polarizações. Alguns disseram ser uma decepção que as regras fossem rompidas para dividir o prêmio, justamente na primeira vez que uma mulher negra era vencedora. Em Manifesto, ela deixa clara sua posição: “Duas mulheres, duas raças, duas nações, duas gerações – dois membros da raça humana”.

Esse tipo de discurso a respeito de igualdade aparece com frequência no novo livro. “Gostávamos das mesmas músicas e programas de televisão, respirávamos o mesmo ar, comíamos a mesma comida, tínhamos os mesmos sentimentos – humanos”, escreve, sobre seu desejo de se encaixar no grupo de amigos brancos.

Esses sentimentos não se aplicavam, porém, ao pai nigeriano. “Sentia vergonha de sua pele muito escura, e lembro que atravessava a rua quando o via andando na minha direção”, revela. “Era racismo internalizado, puro e simples.” Os males externos também a atormentavam. Tijolos foram atirados contra a janela da casa e tentaram alertar sua mãe por “produzir mestiços inferiores”. Mais tarde, foi rejeitada em inúmeros ambientes criativos. “Qualquer pessoa preta que se inscreve na maioria das escolas de teatro se depara com o racismo institucional.”

Bernardine, 62 anos, era um dos oito filhos de um casal formado por uma mãe inglesa e um pai africano. Filha do meio, com “muita personalidade”, cresceu em uma casa de 12 quartos em Woolwich, no sudeste de Londres, que poderia ser o cenário de uma série cômica.

MANIFESTO – SOBRE NUNCA DESISTIR. Bernardine Evaristo. Tradução: Camila von Holdefeder. Companhia das Letras (232 págs., 69,90 reais)

Um episódio seria sobre a banheira que seu pai comprou, mas nunca instalou, obrigando toda a família a se lavar em pias. Outro se concentraria na garagem que ele construiu sem teto e nas vigas nuas pelas quais ele caiu no sótão. Os Evaristo receberam inquilinos ao longo dos anos, entre eles uma família de Goa, na Índia. “A casa deve ter gemido sob o peso de tantos moradores”, escreve.

Ela narra sua história habitacional quando adulta, de um quarto pintado do chão ao teto com “tinta brilhante vermelha”, em uma moradia coletiva destinada à demolição, a um apartamento alugado em Notting Hill, no oeste de Londres, invadido pelo filho do senhorio enquanto ela estava em um retiro de escritores. “Ele havia vencido. Eu tinha 42 anos. Ele era um merda de 19.” Este é um capítulo muito esclarecedor. Embora a habitação seja raramente discutida nas indústrias criativas, ela é, especialmente nas grandes cidades, uma barreira ao sucesso.

“Minha vida criativa está inextricavelmente entrelaçada com meus envolvimentos românticos com outras ­pessoas”, lembra, num capítulo que cataloga suas paixões, aventuras, relacionamentos e sexualidade. Ficamos sabendo de um caso amoroso a longa distância com uma holandesa e da “Dominatriz Mental”, uma mulher com o dobro de sua idade e psicologicamente controladora.

“Uma vez, houve o lançamento de um livro com leituras de uma antologia que apresentava alguns dos meus poemas. A DM me convenceu de que ela era melhor para ler minha poesia que eu”, lamenta. Mesmo quando as coisas ficaram violentas, não foi fácil sair. Mas uma aventura com um “homem dócil, doce e espiritual” restaurou seu senso de identidade. “Se eu tivesse ficado com a DM, teria parado de escrever.”

Bernardine detalha as histórias de fundo de cada um de seus livros, incluindo The Emperor’s Babe (2001), Soul ­Tourists (2005) e Blonde Roots (2009), e a caótica solução dos problemas envolvidos em sua criação. “Se eu tivesse que escolher apenas um dos meus livros para dar ao meu eu mais jovem para ler, seria Garota, Mulher, Outras. Acho que ela ganharia muito com isso”, diz.

O fato de Bernardine não ter sido um sucesso da noite para o dia significou que, em sua lenta, mas resoluta caminhada até o topo, ela conseguiu ver as rachaduras nas indústrias criativas e melhorar a vida das pessoas marginalizadas, fundando uma série de instituições voltadas ao aprimoramento de criadores e artistas negros.

Sua contribuição para a literatura é incontestável, mas curiosamente ela não recebeu até hoje uma única condecoração do império britânico. “Você não pode divorciar a história imperialista da Grã-Bretanha de sua identidade nacional”, escreve, em Manifesto, refletindo sobre o momento em que começou a aprender a história negra.

Agora, admite, já não “joga pedras na fortaleza” e, em vez disso, senta-se nos seus aposentos “tendo conversas educadas, persuasivas e persistentes sobre a melhor forma de transformar infraestruturas ultrapassadas”. Adiante, diz, porém, que “a sociedade opera através de redes poderosas e muitas vezes impenetráveis que sustentam suas hierarquias tribais”. A política de Manifesto às vezes parece confusa. Mas, certamente, os leitores ficarão gratos pela visita guiada à mente de uma pioneira literária. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A escritora e seus fantasmas “

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