

Opinião
Quem disse que é normal?
Novos estudos contestam os significados de normalidade e nos estimulam a repensar e reavaliar os nossos preconceitos e a própria prática médica


O normal não existe. Esta é a ideia por trás de anos de estudos resumidos no excelente livro Sou Normal? Os 200 Anos de Procura por Pessoas Normais (e Por Que Elas Não Existem), de Sarah Chaney, pesquisadora da Universidade Queen Mary, em Londres.
Sara defende a tese de que a humanidade fez, e continua fazendo, um esforço gigante para construir um “conceito de normal”, por meio do qual julgamos tudo ao nosso redor e criamos a classificação de normal ou anormal. “Antes de 1820, a palavra normal não era usada para se descrever ou descrever outros, nem por cientistas ou médicos para entender as populações humanas”, escreve. “O conceito era usado em matemática, para triângulos, equações e fórmulas. As pessoas não eram normais, as linhas e os cálculos eram.”
Mas, progressivamente, esse termo se disseminou e foi sendo aplicado nos meios científicos, até se tornar corriqueiro. Segundo a autora, começaram a surgir evidências de que os cientistas ocidentais criaram a tese do “normal” como meio de segregar os “outros”, definindo indivíduos ou comunidades em relação aos “padrões ocidentais de como a pessoa tinha de ser”.
Houve um grande campo de pesquisas médicas e sociológicas que estabeleceram como normal o branco, ocidental, colonizador e opressor. Surgiu então a obsessão pela normalidade, que culmina com a atual ansiedade de pertencer à ilusão da normalidade exacerbada, a partir da internet, pelas mídias sociais.
Grande parte desse trabalho foi desenvolvida, desde os primórdios do século XIX, por cientistas racistas, promotores da eugenia. Os conceitos a respeito do que é normal e aceitável foram, desde então, enraizados e estatisticamente quantificados de modo a estigmatizar e segregar “minorias, incapazes, degenerados e colonizados” – esses passaram a ser considerados os “anormais” e viram a legitimação de sua suposta inferioridade.
AM I NORMAL? THE 200-YEAR SEARCH FOR NORMAL PEOPLE (AND WHY THEY DON’T EXIST). Sarah Chaney. Wellcome Collection (eBookKindle, 91,88 reais)
Sarah Chaney conclui que “a ideia que um grupo majoritário existe e que personifica o que é chamado de normal é uma ilusão”. Apesar de serem interessantes e coerentes as conclusões da autora, não podemos negar que o conceito de normalidade – além de ter implicações sociais e políticas – exerce um papel importante na medicina diagnóstica atual.
Após a realização de milhares de estudos, e a eles incorporada a tecnologia atual, foram estabelecidos padrões – ou faixas – de valores normais considerados saudáveis. Essas faixas, na maioria das vezes, independem de raça e até de sexo, embora existam situações nas quais valores normais são diferenciados por sexo, idade e hábitos sociais. É o caso, por exemplo, dos valores de hormônios masculinos e femininos, das enzimas por faixa etária e dos marcadores tumorais em fumantes e não fumantes.
Esses valores foram estabelecidos pelo simples fato de, fora da faixa considerada normal em um determinado exame, a pessoa começa a ter riscos mais elevados de apresentar problemas sérios de saúde.
Potássio acima ou abaixo dos valores normais pode aumentar o risco de arritmias e de parada cardíaca. A saúde começou a ser medida e quantificada por exames e valores dentro da normalidade. Houve uma explosão de laboratórios, tecnologias e instituições dedicados à mensuração de tudo no corpo humano.
Junto veio o exagero de medir o irrelevante e tratar o resultado do exame e não mais o paciente. Sabemos, contudo, que valores normais em exames nem sempre definem o saudável. Esse conceito por vezes escapa a muitos profissionais da área de saúde.
Em editorial recentemente publicado na revista médica The Lancet, Vaughan Bell alerta para a complexidade do conceito de normalidade nas sociedades e o perigo de marginalização de pessoas, comunidades e até de raças, sem esquecer do seu papel na medicina moderna.
O artigo de Bell e o livro de Sarah nos estimulam a repensar e a reavaliar os nossos preconceitos à luz da ilusão do normal. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Quem disse que é normal?”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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