Cultura
Para exorcizar o apartheid
No romance A Promessa, vencedor do Booker Prize em 2021, o escritor Damon Galgut percorre quatro décadas de história da África do Sul


O romancista e dramaturgo Damon Galgut, de 58 anos, cresceu em Pretória, na África do Sul, no auge do apartheid. Escreveu seu primeiro romance aos 17 anos e foi duas vezes pré-selecionado para o Booker Prize antes de vencê-lo, no ano passado, com A Promessa.
O livro, lançado no mercado de língua inglesa em 2021 e agora traduzido para o português, abrange quatro décadas tumultuadas – de 1986 a 2018 – no país. A trama acompanha o desejo de uma matriarca branca de legar sua propriedade a um empregado negro.
Galgut mora na Cidade do Cabo e, antes de ganhar o Booker, afirmara que mesmo as duas indicações, por O Bom Médico (Companhia das Letras, 2003) e Em Um Quarto Estranho (Record, 2010), foram suficientes para mudar suas “perspectivas de uma maneira que quase nada mais poderia ter feito”.
The Observer: Como surgiu A Promessa?
Damon Galgut: Os livros tendem a se formar a partir de grupos de ideias ou temas que você carrega por um tempo e com os quais se preocupa. A forma específica desse livro cristalizou-se em torno de uma série de anedotas que um amigo me contou enquanto almoçávamos, meio embriagados, sobre quatro funerais familiares a que ele compareceu. Ocorreu-me que seria uma maneira interessante de contar a história de uma determinada família. A ideia da promessa veio de outro amigo, que me contou que sua mãe havia pedido à família que desse um pedaço de terra à mulher negra que cuidou dela em sua doença final, como acontece no livro.
TO: Por que ambientá-lo em Pretória?
DG: Foi uma maneira de exorcizar um pouco a minha criação. Pretória, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, não era um ótimo lugar para se crescer, mesmo pelos padrões sul-africanos. Era o centro nervoso de toda a máquina do apartheid e tinha uma mentalidade cristã conservadora correspondente, ao lado de uma violência subjacente muito marcante.
TO: Os Swart, a família de A Promessa, são inspirados em sua própria família?
DG: Não especificamente, embora pequenas anedotas estejam misturadas lá, e haja um lado judaico na minha família, um lado calvinista africâner. Você não pode realmente evocar personagens sem se basear em algum aspecto de si. Então, tudo isso, de alguma forma, é um reflexo da minha própria natureza.
TO: O romance tem um estilo narrativo distinto de seus outros livros. Como isso evoluiu?
DG: Comecei e não fiquei contente. No meio do caminho, me envolvi na escrita de um roteiro de filme, o que, na verdade, teve um efeito formativo, porque, quando voltei ao livro, ele me pareceu muito sério. E eu vi uma maneira de inserir um pouco da lógica narrativa do filme. A personalidade do narrador também se move. Esse é um elemento que espero que leve o leitor a se perguntar: quem está contando a história? E o fato de que essa questão é levantada talvez seja seu único ponto de interesse.
A PROMESSA. Damon Galgut. Tradução: Caetano W. Galindo. Editora Record (308 págs., 69,90 reais)
TO: O que o fez ser um escritor?
DG: Há uma forte corrente jurídica na minha família, e havia certa pressão para eu seguir esse caminho. Mas escrever é, basicamente, o que eu sempre quis fazer. Tive linfoma quando criança e, nessa época, muitos parentes liam para mim. Aprendi a associar livros e histórias a um certo tipo de atenção e conforto.
TO: Como o senhor lidou com as expectativas de engajamento político decorrentes de ser um escritor sul-africano?
DG: Os críticos do meu trabalho inicial assumiram o tom de que eu era um filho do privilégio e tinha o luxo de ignorar onde estava a África do Sul. Lembro-me de ter ficado muito incomodado com isso, porque, de alguma forma, eu sabia que era verdade. Os atrativos da ficção, para mim, não são apenas que ela ilumina a história, mas que pode dizer como é ser um ser humano dentro da história, então é um desafio tentar direcionar a obra para o lugar certo.
TO: O senhor tem uma rotina de escrita rígida?
DG: Sou sem esperança, sou uma bagunça. Preciso chegar ao estágio em que estou suficientemente obcecado para que ele me chame logo e não me deixe ir. Eu chego lá, eventualmente, mas leva muito tempo. Quando estou com um primeiro rascunho e tudo escuro – tenho a sensação de uma forma na lama, que estou tentando puxar –, prefiro fazer qualquer coisa a escrever. Isso tende a ser bom para as tarefas domésticas.
TO: Ouvi dizer que escreve à mão.
DG: Tenho certo fetiche por papelaria. Tenho uma caneta-tinteiro com a qual trabalho desde os 20 anos – é uma Parker, tartaruga. Esses cadernos vermelhos que são padrão na Índia, por algum motivo, excitam minha sensibilidade de papelaria, e eu os preencho com começos quase inúteis. Ocasionalmente, uma ideia pega fogo. Depois de dois rascunhos inteiros, me sento para colocá-los no computador.
TO: Qual é o aspecto mais prazeroso da escrita?
DG: Às vezes, você tem a sensação de que abriu uma porta e uma história estava lá, se você puder segui-la frase por frase. Mas, na maioria das vezes, o verdadeiro prazer só vem no final, quando você está juntando tudo e há cada vez mais clareza.
TO: Qual foi o último livro realmente bom que o senhor leu?
DG: Lincoln no Limbo, de George Saunders, é o último livro que realmente me fez sentir como se tivesse me arrancado as calças. Achei tão incomum e radical em sua inspiração… Quem pensaria num livro assim?
TO: Quais escritores vivos o senhor mais admira?
DG: Certa vez, fiz uma peregrinação à casa de Cormac McCarthy, em El Paso. Foi antes de Todos os Belos Cavalos sair, e ele era tão pouco famoso que nem as senhoras da biblioteca pública de El Paso sabiam quem era. Não tive coragem de bater à porta dele. Lutei comigo mesmo, mas pensei: preferia ter a lembrança de estar sentado do lado de fora da casa de Cormac McC arthy ou a lembrança de ser expulso por ele de sua porta? •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Para exorcizar o apartheid”
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