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Fofocas na capela

Crescem os rumores da renúncia de Francisco, mas o papa nega a intenção de abandonar o cargo

Fofocas na capela
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Fadiga. Aos 85 anos e após a cirurgia no ano passado, o pontífice está cada vez mais dependente da cadeira de rodas, mas não abdica dos compromissos firmados - Imagem: Vincenzo Pinto/AFP
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Buscar os sinais da presença divina nos gestos mais banais é a prova de quão terrenos são os cristãos. Nem os cardeais escapam desse cacoete. Nos últimos dias, a ala da Igreja ­Católica que reza diariamente pelo fracasso do papa Francisco tem procurado nas corriqueiras ações do pontífice uma manifestação dos céus de que suas preces serão atendidas em breve. Crescem os rumores da renúncia de Jorge ­Bergoglio, 85 anos, alimentados pela idade avançada e por problemas recentes de locomoção. Os “sinais” inundam as seções especializadas em Vaticano dos principais jornais do mundo e ganharam especial destaque no fim de agosto. No domingo 28, Francisco visitou pela primeira vez o Santuário de Áquila, templo escolhido pelo antecessor Bento XVI ­para encerrar sua jornada no Vaticano, em 2013. Em Áquila está enterrado ­­Celestino V, citado por Dante na ­Divina Comédia, o papa que renunciou ao posto quatro meses depois de assumi-lo, em 1294, assombrado por disputas ­políticas e econômicas no seu entorno. Antes da visita ao santuário, ­Bergoglio ordenou 21 novos cardeais, a maioria com menos de 80 anos, um deles com 48, ­portanto, candidatos a sucedê-lo no ­comando da Igreja.

Em entrevista à Reuters em julho, durante viagem ao Canadá, Francisco deixou a possibilidade em aberto, embora tenha refutado a intenção de abandonar a função em um futuro próximo. “Isso nunca entrou na minha mente. Por enquanto, não é verdade”, afirmou o papa. “Mas, quando chegar a hora em que vir que não posso gerir a Igreja Católica por causa de problemas de saúde, vou fazê-lo. Esse foi o grande exemplo do papa ­Bento XVI. Foi uma coisa muito boa para a Igreja. Ele disse que os papas devem parar a tempo.” No início de agosto, ­Bergoglio voltou ao tema. Segundo ele, a renúncia “não seria uma catástrofe”. Agora, em Áquila, deu outro recado, ao “corrigir” o autor da Divina Comédia. “Recordamos equivocadamente a figura de Celestino como ‘aquele que fez a grande recusa’, segundo a expressão de ­Dante. Mas Celestino não era o homem do não, era o homem do sim. Foi uma corajosa testemunha do Evangelho, porque nenhuma lógica de poder foi capaz de aprisioná-lo e administrá-lo.”

A falta de transparência sobre o estado de saúde do papa alimenta os rumores. Desde a remoção de parte do cólon, em meados do ano passado, tornaram-se mais comuns as aparições públicas do pontífice em uma cadeira de rodas, o que não o impede de cumprir uma agenda cheia, tanto na Itália quanto no exterior. Entre 13 e 15 de setembro, o papa visitará o Cazaquistão. Vaticanista do jornal Il Messaggero, Franca Giansoldati descreveu como “inesperado” o consistório para a nomeação dos novos cardeais. “Parecia quase feito para acelerar as coisas. Logo depois ele anunciou que iria a Áquila. Alguém também pensou se tratar de um sinal de seu abandono do papado. Uma espécie de febre desenvolveu-se em torno dessas datas.” A jornalista acrescentou: “O corpo do papa não lhe pertence, pertence à Igreja. Além disso, ele também é uma figura pública e há milhões de católicos no mundo que têm o direito de conhecer o estado de saúde do pontífice. Nem o colégio dos cardeais recebeu informações. Nesse contexto, fica claro que há boatos e notícias às vezes baseados em nada”.

Os visíveis problemas de saúde do pontífice alimentam as especulações

Entre a visita ao túmulo de Celestino V em Áquila e a renúncia propriamente dita, Bento XVI refletiu por quatro anos. Não está claro se a saúde permitirá a Francisco planejar a sucessão por tanto tempo. E se terá condições de influenciar na escolha de um nome capaz de manter seu legado. Em nove anos de papado, ­Bergoglio iluminou não só o ­Vaticano, mas o mundo. Em contraste com o bedel taciturno Ratzinger, mais preocupado com a liturgia do que em inspirar o rebanho, o argentino valeu-se da simpatia, humildade e uma dose certa de populismo latino-americano para se aproximar dos fiéis. Não teve medo da oposição interna e empreendeu mudanças cruciais na ­administração da Cúria. Apesar de derrapadas aqui e ali, estendeu as mãos aos homossexuais e acabou com o ostracismo dos padres que pedem dispensa da batina para se casar. Não foi enfático na investigação de casos de pedofilia e abusos sexuais na Igreja, mas não acobertou os crimes revelados na última década. Substituiu a apatia política de Bento XVI pelo ativismo e tornou-se um estadista em um planeta carente de líderes e ideias. A encíclica Laudato Si, publicada em 2015, é um libelo em defesa do meio ambiente e uma crítica ao negacionismo e ao neoliberalismo.

“A política não deve se submeter à economia, e esta não deve se submeter aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”, diz um trecho. “Ao pensar no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem devidamente a serviço da vida, especialmente da vida humana.” Na Fratelli Tutti, de 2020, a ênfase está na luta pela igualdade, diversidade e fraternidade: “Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (…) precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e na qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos”.

Quanto ao próprio futuro, Bergoglio indicou o desejo de, se e quando venha a renunciar, continuar o trabalho missionário em alguma igreja em Roma, longe das benesses do Vaticano. “Se eu sobreviver depois da minha demissão, gostaria de fazer algo assim: confessar e cuidar dos doentes”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fofocas na capela “

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