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Seis meses depois…
Ninguém arrisca prever o desfecho para a invasão da Ucrânia, enquanto o Kremlin ajusta seus objetivos


No início da noite de 21 de fevereiro, ficou impossível ignorar que Vladimir Putin realmente planejava algo terrível para a Ucrânia.
Até aquele momento, exatamente seis meses atrás, muitas vozes pediam calma diante das advertências norte-americanas e britânicas cada vez mais insistentes de uma invasão em grande escala. Os governos francês e alemão, autoridades russas e até o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, sugeriram que a mobilização de tropas por Putin era um blefe e as advertências de Washington, exageradas.
Então Putin apareceu na televisão, em uma reunião de seu conselho de segurança no Kremlin. Ao chamar seus cortesãos um a um ao microfone, o presidente russo simulou pedir conselhos e humilhou os poucos a hesitar em dar as respostas que ele queria. Aparentemente, a questão em discussão era se a Rússia deveria reconhecer a “independência” das chamadas “repúblicas populares” de Donetsk e Luhansk. Foi apenas pretexto. Depois, a televisão russa cortou para um longo e desconexo discurso de Putin, no qual ele menosprezou a história e o Estado ucranianos.
Três dias depois, nas primeiras horas da manhã, começou o ataque russo, com mísseis lançados sobre alvos em toda a Ucrânia e tropas terrestres a entrar no país em três direções. Essa decisão fatídica mudou a Ucrânia, a Rússia e o mundo de forma irrevogável nos seis meses seguintes. Milhares de ucranianos estão mortos e milhões deslocados. A Rússia também mudou, com o regime abandonando os últimos vestígios de democracia e adotando o militarismo completo, enquanto o Ocidente recalibrava suas relações com o Kremlin e o dinheiro russo e muitos países iniciavam um programa de apoio militar sem precedentes à Ucrânia.
O choque daquelas primeiras horas da guerra, quando o impensável se tornou realidade, é um momento que provavelmente acompanhará todos os ucranianos pelo resto de suas vidas. Nos primeiros dias caóticos, os fatos se desenrolaram incrivelmente rápido. No fim da primeira semana, o país vivia uma nova realidade, em que as estradas eram pontilhadas de postos de controle administrados por moradores locais armados com o que encontravam, prefeitos percorriam as cidades com coletes à prova de balas, na organização da defesa, e famílias suportavam a separação de seus entes queridos, enquanto milhões de mulheres e crianças corriam para a segurança no exterior.
Decisões em frações de segundos podem significar vida ou morte. Cidadãos cujos amigos haviam zombado deles nas semanas anteriores por estocar alimentos ou fazer planos de fuga agora eram aclamados como profetas. Inúmeras famílias decidiram trocar Kiev pelas pacíficas cidades suburbanas a oeste, na intenção de evitar o esperado ataque à cidade, mas foram submetidas a um mês de terror pelas forças de ocupação, enquanto o centro da capital permaneceu relativamente ileso.
O discurso russo tem mudado a cada nova dificuldade. As negociações entre as partes esfriaram
Na cidade de Mariupol, no sul, quem decidiu partir nos primeiros dias, quando ainda era possível, conseguiu encontrar segurança em outras partes da Ucrânia ou no exterior. Aqueles que preferiram esperar para ver acabaram imobilizados, obrigados a suportar semanas de bombardeio durante a longa e violenta operação russa para tomar o controle da cidade. Suas histórias, de enterrar corpos em covas rasas nos quintais, de abrigar-se em porões úmidos e gelados, de doenças, abortos, fome e privações, lembram as da Segunda Guerra Mundial.
Em meio a todo o horror e o trauma, surgiu uma história edificante de um país recém-unido, no qual as divisões anteriores evaporaram diante da ameaça existencial vinda do Leste. A resistência começou com Zelensky e sua equipe, que ficaram em Kiev em vez de fugir, e foi replicada em muitos níveis da sociedade. “O Kremlin realmente esperava que ficássemos desorientados e fugíssemos”, disse a vice-primeira-ministra Iryna Vereshchuk, chamada vários dias antes da invasão pelo embaixador britânico e aconselhada a fugir da capital. Em vez disso, ela ficou e trabalhou no complexo fortificado de Zelensky no centro de Kiev, dormindo em uma cama de campanha. “Você pode imaginar se as pessoas descobrissem que o presidente e sua equipe, e o governo, fugiram? Claro, isso teria desmoralizado todo mundo”, disse.
Na maioria das cidades, os prefeitos também permaneceram a postos e ajudaram a organizar a resistência. “Eles não esperavam isso”, disse Gennady Trukhanov, prefeito de Odessa, em entrevista durante as primeiras semanas da guerra. Trukhanov foi indicativo de uma mudança entre muitas autoridades ucranianas no sul e leste do país, que antes eram vistas como pró-russas, mas agora ficaram firmemente ao lado de Kiev. “Eles não esperavam que houvesse barricadas em Odessa, que as pessoas não os receberiam com pão e sal, que Kharkiv lutaria, que Chernihiv lutaria.”
Palavras ao vento. Os apelos de Zelensky já não comovem. A Otan manda armas, mas não parece disposta a ir além – Imagem: Martin Bernetti/AFP e OTAN
Na região vizinha de Kherson, onde o exército russo conseguiu entrar sem muita resistência militar nos primeiros dias da guerra, está claro que algumas autoridades de segurança colaboraram e vários políticos concordaram em trabalhar para administrações dirigidas pelo Kremlin. Os moradores relatam, no entanto, que os russos agora lutam para preencher cargos de nível médio e enfrentam forte oposição clandestina da maioria dos moradores.
Em fevereiro, o objetivo declarado da “operação militar especial”, como o Kremlin a chama, era proteger as populações de língua russa das regiões de Donetsk e Lugansk. Em outras ocasiões, assessores do Kremlin disseram que o conflito é com a Otan e a presença da aliança militar nas fronteiras da Rússia.
Enquanto o avanço russo sobre Kiev estagnou, as esperanças de Putin de uma operação rápida que instalaria um novo governo pró-Rússia no país, mantendo-o como um Estado nominalmente independente, mas na órbita de Moscou, teriam sido baseadas na total incompreensão sobre como a Ucrânia se transformou nos últimos anos. Isso levou a uma mudança de retórica. Agora, os políticos russos falam na linguagem de uma simples ocupação de terreno, de criar um “tampão” na Ucrânia entre Moscou e o Ocidente. O desdém pelo povo, a língua e a cultura ucranianos veio mais à tona.
A mistura de mensagens podia ser vista no prédio da escola em Novyi Bykiv, a leste de Kiev, onde um batalhão russo de mísseis Buk ficou estacionado durante um mês no início da guerra. Após a retirada, as mensagens de giz rabiscadas pelos soldados nos quadros-negros mostram a confusão de sentimentos experimentada pelos russos: alguns se desculpavam, outros eram abusivos. Nas salas de aula, pintaram os retratos de figuras históricas e literárias ucranianas, numa clara manifestação do desejo de apagar a cultura local. Alguns soldados pareciam, porém, confusos e atormentados por seu papel de ocupantes. “Olhe, me desculpe. Não sabíamos que seria assim”, disse um soldado choroso a uma mulher cujo salão de beleza ele usava como base, durante a ocupação da cidade de Trostianets.
Mas essa confusão rapidamente se transformou em raiva e ódio, quando os russos foram confrontados com um contra-ataque ucraniano surpreendentemente feroz e sentiram a ira das populações locais, em vez da gratidão que lhes foi dito para esperar. Em todas as áreas ocupadas ao redor de Kiev, soldados russos cometeram assassinatos e outros crimes de guerra. Houve saques generalizados. Quando as notícias dos horrores em Bucha e em outros lugares começaram a vazar, no fim de março, isso apenas fortaleceu a determinação ucraniana e deixou feridas psicológicas que provavelmente se inflamarão durante gerações.
Na Rússia, o horror inicial pela invasão entre as elites políticas e empresariais foi seguido pelo reconhecimento de que a dinâmica entre a Rússia e o Ocidente mudou de maneira fundamental. Diante de uma escolha difícil, a maioria optou por se calar ou agora se define como patriota. “Com as sanções, os russos percebem que não têm mais chance de viver no Ocidente, então estão todos se unindo em torno da bandeira”, disse uma fonte ligada ao Kremlin.
As sanções impostas pelo Ocidente reaproximaram a elite russa de Putin
Muitos russos deixaram o país, seja por razões políticas, seja porque as sanções impossibilitaram seus negócios. Assim como no rescaldo da revolução bolchevique um século antes, as cidades próximas às fronteiras se encheram com dezenas de milhares de exilados russos.
Riga, capital da Letônia, tornou-se o centro de jornalistas independentes criminalizados e proibidos de trabalhar na Rússia. Yerevan, na Armênia, é para onde milhares de profissionais de tecnologia viajaram e que agora chamam de lar. Tbilisi, na Geórgia, a cidade turca de Istambul, a capital sérvia, Belgrado, e Berlim têm novas comunidades de exilados russos. Ocasionalmente, a insistência dos exilados de que também são vítimas causou atrito com as comunidades maiores de refugiados ucranianos forçadas a fugir da invasão.
Seis meses depois, como tudo terminará é a pergunta mais difícil de se responder. Nas primeiras semanas da guerra, o bilionário russo Roman Abramovich viajou para Kiev em uma missão sancionada pelo Kremlin para intermediar negociações de paz entre Zelensky e Putin. Em março, Abramovich sentiu que estaria perto de conseguir algo que pudesse servir como um modelo viável para conversas entre os dois líderes, segundo os informados sobre as discussões, mas nada aconteceu. Desde que o mundo descobriu os crimes em Bucha e outros lugares, houve pouca discussão substancial.
Moscou continua sua ofensiva lenta no Donbas, mas quaisquer planos para se reagrupar e lançar um novo ataque a Kiev parecem irreais a médio prazo. Até mesmo os referendos que Moscou planeja realizar nos territórios ocupados, para dar uma fina cobertura à anexação, parecem incertos de ocorrer, pois a situação em campo continua muito instável. A Ucrânia prometeu repetidamente um contra-ataque, embora isso também seja repleto de dificuldades. “Nesta fase, não tenho certeza se alguém sabe qual é o fim do jogo”, disse a fonte ligada ao Kremlin.
Na quarta-feira 24, meio ano após o início da invasão, a Ucrânia celebrou seu dia da independência. Em uma reviravolta no desfile militar tradicional, dezenas de peças de equipamentos militares russos retorcidos e destroçados foram trazidos para a Rua Khreshchatyk, no centro de Kiev. É tanto um reconhecimento do fato de que os militares da Ucrânia são necessários na frente quanto um gesto sombriamente humorístico sobre notícias de que Putin esperava realizar um desfile da vitória na avenida depois de conquistar rapidamente Kiev. “Com seis meses de guerra em grande escala, a vergonhosa exibição de metal russo enferrujado é um lembrete para todos os ditadores de que seus planos podem ser arrasados por uma nação livre e corajosa”, disse o Ministério da Defesa ucraniano. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Seis meses depois…”
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