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O velho e o novo

Os eleitores jovens são a maior ameaça à permanência do MPLA no comando de Angola

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Cansaço. Os eleitores jovens estão cansados da política institucional depois da guerra civil. Lourenço, candidato à reeleição, representa o longo reinado do MPLA, aliado da Rússia e da China - Imagem: Presidência de Angola e Nelson Nascimento/TEDx Luanda
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Milhões de angolanos foram às urnas em uma eleição histórica descrita como “momento existencial” para o importante país da África Central, rico em petróleo, e um teste para a democracia numa ampla extensão do continente. A votação na quarta-feira 24 colocou políticos veteranos diante de uma geração de jovens eleitores que começam a entender que podem provocar uma mudança radical e escapar da sombra da Guerra Fria.

Observadores dizem que o descontentamento com o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no poder desde que o país declarou independência de Portugal, em 1975, chegou a um ponto em que o partido só conseguirá garantir mais cinco anos por meio de aparelhamento e repressão. “É uma eleição existencial, e será uma disputa muito acirrada. Se houvesse eleições livres e justas, não há dúvida de que a oposição venceria, mas o governo não vai permitir”, afirma Paula Cristina Roque, analista e escritora independente.

Outros partidos e líderes que permaneceram décadas no poder depois de vencer as lutas de libertação no continente provavelmente verão as crescentes dificuldades de seus pares em Angola como uma advertência. Assim como em outros lugares da África, um fator-chave em ­Angola é a juventude da população. Mais de 60% têm menos de 24 anos. Tiago Costa, um dos mais bem-sucedidos de uma nova onda de humoristas e outros artistas criativos, disse que os milhões de jovens que votarão pela primeira vez têm valores e visões drasticamente diferentes dos de seus políticos. “Vivemos a mesma coisa repetidamente. Os jovens se perguntam: ‘O que acontece aqui?’ Essa garotada está perdida nesses discursos e histórias que simplesmente não entendem ou merecem”, disse Costa, de 37 anos. “Os jovens daqui precisam aprender com os erros dos mais velhos e se esforçar para fazer de Angola um país para angolanos, não para partidos que sempre nos dividem e nunca fazem o seu trabalho.”

O presidente João Lourenço, autoridade veterana do MPLA e ex-ministro da ­Defesa, assumiu o poder em 2017 como sucessor escolhido a dedo de José ­Eduardo dos Santos, cujo governo autoritário durou 38 anos. O corpo do ex-presidente, falecido em julho na Espanha, chegou a Luanda no sábado 20 e deu um novo elemento à tensa campanha eleitoral. Embora Lourenço, de 68 anos, tenha tentado promover o crescimento econômico e pagar grandes dívidas, não conseguiu melhorar a vida da maioria dos 35 milhões de habitantes. Críticos dizem que uma campanha anticorrupção de alto nível teve como alvo inimigos apenas potencialmente poderosos – como Isabel dos Santos, a filha extremamente rica do ex-presidente –, enquanto a Anistia Internacional descreveu “uma repressão sem precedentes aos direitos humanos, incluindo assassinatos e prisões arbitrárias, na preparação para a eleição de 24 de agosto”.

A expectativa de vida é uma das mais baixas do mundo e milhões vivem na miséria

Segundo analistas, Lourenço, quando confrontado com a opção entre salvar o MPLA ou salvar a nação, colocou o partido em primeiro lugar. “Eles não iam se reformar fora do poder”, avalia Roque. “Durante muito tempo os angolanos disseram: ‘Somos pobres, estamos lutando, mas estamos em paz e isso basta’. Mas agora estão zangados, desapontados e não têm nada a perder.”

O crescimento que se seguiu ao fim da brutal guerra civil de 27 anos, em 2002, beneficiou amplamente a elite. A expectativa de vida em Angola continua a ser uma das mais baixas do mundo, os serviços são irregulares e milhões vivem na miséria, apesar dos enormes ganhos do país com a exportação de petróleo. “A maioria com quem falo diz que Lourenço não fez nada por eles durante esses cinco anos”, diz Laura Macedo, ativista que luta por melhores condições para os bairros pobres de Luanda. “A maioria planeja votar na oposição.”

O principal rival de Lourenço é Adalberto Costa Júnior, da União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita). Embora apenas oito anos mais jovem que o titular, Costa Júnior tem tentado se posicionar como um representante da sociedade civil e de todos os que perderam com os anos de governo do MPLA. A Unita foi a representante do Ocidente, financiada e armada pelos Estados Unidos e seus aliados, mas acabou por perder a guerra civil para o MPLA, apoiado pela União Soviética e Cuba. Sob Costa Júnior, o partido inclinou-se para o centro, mas ainda é visto como pró-ocidental e pró-empresas, em contraste com a base ideológica socialista do MPLA e os laços contínuos com a Rússia.

Angola, com suas enormes reservas de petróleo, é hoje mais uma vez uma zona-chave de competição entre as grandes potências. Pequim perdeu terreno nos últimos anos, depois que José Eduardo dos Santos acumulou dívidas enormes por obras de infraestrutura muitas vezes mal construídas ou mal projetadas. Tanto a Rússia quanto os Estados Unidos têm feito esforços para ganhar influência também em Luanda. O conflito na Ucrânia intensificou as rivalidades em todo o continente. Angola estava entre os 17 países africanos que se recusaram a apoiar uma moção da Assembleia Geral da ONU contra a invasão russa, levando alguns a descreverem uma “nova Guerra Fria” na região.

Tanto Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, quanto ­Antony Blinken, secretário de Estado dos Estados Unidos, visitaram a África nos últimos meses, num esforço para reforçar as relações locais. Nenhum deles esteve em Luanda, embora ambos tenham dado atenção à África Central. Autoridades da Unita dizem estar preparadas para esperar mais cinco anos antes de alcançar a presidência, mas as dificuldades do MPLA ressaltam os desafios enfrentados por muitos outros partidos ou líderes que chegaram ao poder no rescaldo do conflito no continente.

Nic Cheeseman, professor de democracia especializado em política africana na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, disse que os problemas existentes se combinaram aos efeitos da pandemia de Covid-19 no continente e os recentes aumentos globais nos preços dos alimentos e combustíveis para provocar uma onda de descontentamento que ameaçava desestabilizar governos em todos os lugares – autoritários e democráticos. “Você pode fraudar eleições e manter o poder, mas isso não elimina a raiva. O risco então é que a frustração venha de outras formas, com tumultos, violência política e agitação.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O velho e o novo “

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