Política
Guerra santa
Bolsonaro inicia ofensiva para demonizar Lula. A campanha petista vacila em relação à melhor forma de dialogar com o eleitorado evangélico


Ao considerar apenas a preferência do eleitorado evangélico, Jair Bolsonaro obteve 11,5 milhões de votos a mais que o petista Fernando Haddad no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. A diferença nesse segmento foi maior que os 10,7 milhões de votos que separaram os dois adversários na contagem geral e, levados em conta somente os votos válidos, representou um placar de 69% a 31% a favor do ex-capitão, bem mais elástico que o 55,1% a 44,9% registrado no total. Na análise de numerosos especialistas, o católico ex-capitão jamais teria sido eleito presidente se não fosse o apoio massivo dos evangélicos. Desse segmento o então candidato absorveu o discurso religioso ao longo da campanha ao mesmo tempo que os pastores inflamavam os ouvidos dos fiéis com notícias falsas, entre elas a distribuição de um suposto kit gay nas escolas públicas, quando Haddad era ministro da Educação.
Quatro anos depois, é novamente a aposta no voto evangélico que move Bolsonaro na tentativa de levar a disputa ao segundo turno, uma vez que Lula, segundo a pesquisa Ipec divulgada na segunda-feira 15, véspera do início oficial da campanha, ainda pode liquidar a fatura na primeira etapa. Mais uma vez apoiado por Silas Malafaia, Edir Macedo, Marcos Feliciano e outros influentes pastores midiáticos, Bolsonaro, atualmente no PL, busca beneficiar-se de uma ofensiva que passa pela demonização – metafórica e literal – de Lula e do PT. Neste início de campanha, o discurso de ódio tem na primeira-dama Michelle Bolsonaro seu principal vetor e nas últimas semanas tem ganhado força nos sermões e grupos de WhatsApp com uma profusão de fake news e mensagens de intolerância religiosa.
A PRIMEIRA-DAMA É A PRINCIPAL ARMA DO CAPITÃO PARA RECONQUISTAR OS FIÉIS DESILUDIDOS COM SEU GOVERNO
De acordo com o Ipec, Bolsonaro parece colher os frutos dessa ofensiva: 47% dos eleitores que se identificam como evangélicos disseram ter a intenção de votar por sua reeleição, enquanto 29% afirmaram preferir Lula. Em votos válidos, a distância entre os dois candidatos cresce, com 56% para Bolsonaro e 35% para Lula. Segundo o instituto, 28% do total de entrevistados se declararam evangélicos, aí incluídas as diversas denominações. O resultado nesse segmento é bem diferente daquele registrado em dezembro pelo Datafolha (39% a 33% a favor de Lula) e acendeu o sinal de alerta no comando da campanha do petista, que parece ainda não ter encontrado a forma adequada de dialogar com essa parcela de eleitores.
A vantagem que Lula apresentava na virada do ano é atribuída por pesquisadores ao setor denominado como “eleitorado evangélico oscilante”, ou seja, aqueles que votaram em Bolsonaro em 2018, mas não são ultraconservadores ou radicalizados e estão desiludidos ou frustrados com seu governo. “Essa parcela se sente atraída por Lula pela questão da memória e do legado econômico, mas seu voto ainda não está definido”, observa a socióloga Esther Solano, coordenadora de uma pesquisa qualitativa sobre o tema realizada pelo Observatório Democracia em Xeque. “Esse eleitor olha para o Lula e lembra que vivia melhor, tinha mais dignidade econômica. Mas também olha para Bolsonaro e se sente mais atraído pela questão dos costumes e pela agenda moral.”
Trata-se, portanto, de um grupo decisivo para definir os rumos da eleição. Nessa corrida, Bolsonaro largou na frente enquanto a campanha petista ainda procura acertar o passo. “Nas últimas semanas, percebemos que há um movimento orgânico e militante pelo voto em Bolsonaro em algumas igrejas evangélicas, principalmente nas pentecostais e neopentecostais. De um lado, há um discurso messiânico em relação a Bolsonaro, que seria o legítimo representante dos cristãos no Brasil. De outro, um discurso muito forte de demonização do PT e de Lula”, afirma Solano. O principal boato espalhado nos últimos dias nos cultos e grupos de WhatsApp afirma que, se eleito, Lula mandará fechar os templos evangélicos. Outra fake news muito difundida dá conta de que os pastores serão obrigados pelo governo do PT a casar pessoas do mesmo sexo durante os cultos.
Bolsonaro é apoiado por Silas Malafaia e outros pastores midiáticos – Imagem: Isac Nóbrega/PR
“Conversamos sobre o risco de perseguição que pode culminar no fechamento de igrejas”, admitiu no domingo 14 o deputado federal Marcos Feliciano, do PL, pastor da Assembleia de Deus. Embora não haja proposta alguma de fechamento de igrejas, o que, inclusive, seria inconstitucional, a mentira é repetida à exaustão nos templos de outras denominações, como Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Internacional da Graça, Renascer em Cristo, Igreja do Evangelho Quadrangular, Sara Nossa Terra e Presbiteriana. O objetivo é manter Lula no alvo. “Tenho que alertar meu rebanho de que há um lobo nos rondando, que quer tragar nossas ovelhas através da enganação e da sutileza”, resume Feliciano, que voltou à carga na terça-feira 16 ao dizer que Lula “usará a Receita Federal” para perseguir as igrejas. Não por coincidência, no dia seguinte, Bolsonaro anunciou a ampliação dos benefícios fiscais aos pastores, isentos do recolhimento de contribuição previdenciária.
Alguns vídeos que circularam nas últimas semanas no WhatsApp são de dar inveja à incrível história da “mamadeira de piroca” difundida em 2018 entre os evangélicos. Um deles mostra uma suposta escola de “cidade governada pelo PT” na qual meninos e meninas de diferentes idades frequentam o mesmo banheiro sob o incentivo de professores “de esquerda”. Em outro vídeo, mulheres de biquíni defendem o poliamor e os relacionamentos abertos e são identificadas como “feministas do PT”. Às vésperas do início oficial da campanha, a demonização ganhou as ruas. Em Goiânia, Porto Alegre e Ribeirão Preto foram publicados outdoors nos quais aparecem lado a lado um Lula carrancudo sobre fundo vermelho e enfumaçado e um Bolsonaro com a expressão plácida sobre um verde patriótico. Abaixo das imagens são dispostas em oposição palavras como aborto e vida ou bandido preso e bandido solto, entre outras. O grupo Prerrogativas, que reúne advogados e juristas progressistas, fez uma representação contra a propaganda no TSE.
De norte a sul do País, multiplicam-se outdoors com fake news para demonizar a esquerda – Imagem: Redes sociais
Atento ao dia a dia político das principais igrejas evangélicas do País, o jornalista Gilberto Nascimento, autor do livro O Reino: a História de Edir Macedo e Uma Radiografia da Igreja Universal (Cia. das Letras), avalia que a campanha de Lula não dá a devida atenção ao potencial nefasto do material divulgado. “É muita fake news e muita informação distorcida. Há fiéis evangélicos que meses atrás tendiam a votar no PT e falavam que Lula fez mais pelos mais pobres, mas que agora têm colocado essa questão moral como uma dificuldade”, observa. Ele dá exemplos: “Esta semana conversei com dois influentes evangélicos neopentecostais que antes eram pró-Lula, mas agora estão dizendo assim: quero votar no Lula, mas não posso concordar que o pastor seja obrigado a casar pessoas do mesmo sexo nem que as crianças nas escolas sejam orientadas a se tonarem homossexuais. Tudo isso está sendo difundido de uma maneira muito intensa nos cultos e grupos de WhatsApp”.
No PT, uma disputa interna se dá em torno do pastor Paulo Marcelo Schallenberger, ligado à Assembleia de Deus e alçado à condição de responsável por “organizar a interlocução” da campanha de Lula com os evangélicos a partir da produção de um podcast e outras peças de mídia dedicadas ao segmento. Setores evangélicos do PT e dos movimentos sociais criticam a escolha de Schallenberger, que não tem histórico de militância progressista e, entre outras coisas, propôs que Lula, assim como Bolsonaro, adotasse um salmo da Bíblia como lema de campanha: “O pastor não é o nome ideal e sua saída deve ser confirmada nos próximos dias”, afirma uma fonte na direção petista. Entre os progressistas, a percepção é a de que Lula erra ao tentar repetir uma abordagem ao estilo Malafaia. “É grave não entender que há evangélicos aliados à candidatura e que estão na caminhada contra a barbárie que se instalou no País. Eles não conseguem reconhecer esses aliados e tratam todos nós evangélicos como se fôssemos manipulados pelo voto das lideranças midiáticas”, diz Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
ENTRE OS EVANGÉLICOS, BOLSONARO LIDERA COM 47% DAS INTENÇÕES DE VOTO, SEGUNDO O IPEC. LULA FIGURA COM 29%
Nome mais conhecido do PT entre fiéis de diversas denominações, a deputada federal Benedita da Silva, coordenadora do Núcleo de Evangélicos do partido e tradicionalmente uma opositora à mistura de política e religião, defende o debate travado no dia a dia como melhor forma de conquistar o voto do segmento: “É esclarecendo as verdadeiras causas do sofrimento do povo que estamos chegando à base evangélica. Temos de mostrar que Lula fará o que já fez em seus dois governos, garantindo emprego e comida na mesa do povo e respeitando a liberdade religiosa assegurada pela Constituição”. A deputada repudia as fake news: “Basta ver os anos de governo do Lula e da Dilma para constatar que eles nunca perseguiram evangélicos nem fecharam nenhuma igreja”.
No comando da campanha existe a consciência de que Lula tem de trabalhar para vencer no primeiro turno e que para isso todo apoio é importante. Em poucos dias, a candidatura petista pôde comemorar as adesões do Avante de André Janones e do PROS, esta última confirmada na terça-feira 16, após algumas idas e vindas na Justiça. Com dez partidos em sua coligação, reverter a ofensiva bolsonarista entre os evangélicos parece ser uma das prioridades do ex-presidente para garantir o que falta de apoio para bater Bolsonaro logo de cara: “Haverá um esforço para dar visibilidade às lideranças evangélicas que apoiam Lula e disseminar informações positivas sobre seu governo que, por exemplo, aprovou as leis de Liberdade Religiosa e do Dia Nacional da Marcha para Jesus”, diz um dirigente do PT.
Lula conta com poucos pastores progressistas, a exemplo de Henrique Vieira. A esposa Janja virou alvo da intolerância religiosa – Imagem: Redes sociais e Ricardo Stuckert
Pontos fracos de Bolsonaro reconhecidos pelas eleitoras evangélicas foram identificados por pesquisas qualitativas realizadas pelo comando da campanha petista e serão explorados. Entre eles, “ser desumano”, “ser grosseiro com as mulheres” e “não gostar de trabalhar”. A estratégia de Lula é impedir que o elevado índice de rejeição de Bolsonaro sofra uma queda significativa. Nos próximos dias, serão agendados os primeiros encontros com lideranças evangélicas nacionais. Entre os nomes especulados estão o do pastor Manoel Ferreira, presidente vitalício da Convenção Nacional das Assembleias de Deus do Brasil, e o de seu filho, o também pastor Abner Ferreira. Não se trata de conquistar apoio, mas de esclarecer as posições da campanha e reduzir o impacto das fake news.
Enquanto a nova estratégia não é adotada, o PT joga na defensiva. Nas redes sociais circula uma imagem com Lula juntando as mãos em forma de oração e a mensagem: “O bolsonarismo volta a mentir para espalhar terror entre as pessoas de fé”. A peça publicitária também afirma que Lula “respeita todas as religiões” e “não vai fechar as igrejas”. Em vídeo, a presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, afirmou que, “por não ter propostas para o povo brasileiro”, Bolsonaro recorre às fake news: “Mistura política com religião e tenta usar a fé das pessoas para ganhar votos. Será que eles acham mesmo que convencerão o povo de que Lula vai atacar a liberdade religiosa, o direito de culto e a família?”, pergunta a dirigente, antes de elencar as leis aprovadas durante os governos do PT.
Feliciano é um dos que acusam Lula falsamente de pretender fechar as igrejas – Imagem: Evaristo Sá/AFP
Um dos flancos de ataque mais pesados – e que deverá ser exaustivamente explorado por Bolsonaro durante a campanha – tem como alvo a mulher de Lula, a socióloga Rosângela da Silva. Tudo começou quando Janja, como é conhecida, postou uma foto vestida de branco ao lado de imagens de orixás de religiões de matriz africana com os dizeres “Saudades de vestir branco e girar, girar, girar…”. Em seu ato inaugural de campanha realizado em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, na terça-feira 16, Lula reagiu: “Bolsonaro é um fariseu, está tentando manipular a boa-fé de homens e mulheres evangélicos que vão à igreja tratar de sua fé e de sua espiritualidade”, disse. Em outro momento, o petista rebateu as notícias de que ele e Janja teriam “vendido a alma” para vencer as eleições: “Se tem alguém que é possuído pelo demônio é esse Bolsonaro”.
A “notícia” sobre as almas vendidas inundou os grupos bolsonaristas depois que Michelle Bolsonaro compartilhou em 9 de agosto um vídeo da participação de Lula em cerimônia realizada por uma das mais tradicionais casas de umbanda do Brasil. O malicioso comentário da primeira-dama – “Isso pode, né? Eu falar de Deus, não” – somou-se ao post original da vereadora paulista Sonaira Fernandes, do Republicanos, que escreveu: “Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição” e bombou nas redes sociais. Em contraponto à “macumbeira” Janja, Michelle é a principal aposta de Bolsonaro para deslanchar de vez no eleitorado evangélico e tem protagonizado momentos em que política, religião, misticismo e preconceito se misturam, como o discurso “em transe” no lançamento da candidatura do marido no Maracanãzinho ou as sessões de orações noturnas para livrar o Palácio do Planalto do demônio, que, segundo a primeira-dama, ali habitava até 2018. A maior parte do eleitorado, dizem as pesquisas, discorda do recorte temporal feito por Michelle Bolsonaro. Para muitos, o capeta ocupou o palácio quatro anos atrás e ainda não saiu de lá.
LULA, EM RESPOSTA AOS ATAQUES: “SE TEM ALGUÉM POSSUÍDO PELO DEMÔNIO É ESSE BOLSONARO”
Segundo Solano, a aposta pode dar certo porque Michelle tem mais legitimidade para falar como cristã do que o próprio Bolsonaro. “Ela utiliza o léxico cristão de uma forma muito natural e é o rosto gentil do bolsonarismo. Também não apresenta alguns defeitos que são muito criticados na base evangélica, como a intolerância de Bolsonaro ou a sua falta de compaixão e humanidade. Captamos em nossa pesquisa que há grupos evangélicos que criticam muito isso, mas Michelle consegue de fato dialogar com aqueles bolsonaristas evangélicos mais moderados que não gostam da face violenta do bolsonarismo. Ela tem uma cara mais humana e consegue se conectar com essa base desiludida.”
A religião também foi um dos temas principais no primeiro comício da campanha de Bolsonaro, realizado em Juiz de Fora, cidade mineira onde o ex-capitão foi esfaqueado em 2018. Chamada para o alto do trio elétrico ao fim do discurso de Bolsonaro, Michelle foi ovacionada antes de entabular um discurso repleto de referências a Deus e à luta do Bem contra o Mal. “O povo brasileiro será liberto da mentira e do engano. Peço sabedoria ao povo de Deus, para que não entregue o País nas mãos de nossos inimigos”, disse. Apresentada pelo marido como “a pessoa mais importante neste momento”, a primeira-dama também voltou a insinuar que a esquerda teria participação no atentado praticado por Adélio Bispo, possibilidade descartada pelo inquérito da Polícia Federal: “Aqueles que deram a facada são os mesmos que agora pregam o amor e a pacificação”.
O pastor Schallenberger assessora a campanha petista. Benedita da Silva cobra maior engajamento – Imagem: PT na Câmara e Redes sociais
Solano aponta três dificuldades que a candidatura de Lula terá para confirmar o voto do eleitorado evangélico oscilante. A primeira é vencer o estigma causado pela campanha de demonização. A segunda é estabelecer canais de comunicação mais efetivos. “Eles têm uma militância orgânica territorial nas igrejas e o PT não tem como se equiparar a isso”. A terceira dificuldade é saber utilizar o léxico cristão pentecostal. “Não se pode falar de feminismo ou de pautas que são caras ao campo progressista como direitos humanos ou liberdade religiosa.” Para a socióloga, a campanha de Lula vive hoje um dilema em relação aos evangélicos: “Se entrar nos temas conservadores e na pauta moral e comportamental, terá uma dificuldade muito grande de enfrentar o aparato dos pastores que pautam esse debate. E se não entrar, os deixará falando sozinhos com toda essa carga demonizadora”.
Para Valéria Zacarias, é preciso trazer o discurso para a realidade cotidiana. “Ninguém é somente evangélico. O indivíduo evangélico também é afetado pelo alto custo de vida, pelo desemprego e pela violência nas comunidades. Esses seriam os pontos de aproximação que minariam as forças das lideranças midiáticas comprometidas com esse projeto de poder que está reinando de forma absoluta no Brasil.” Ela pede pressa: “Há caminhos, mas o tempo está ficando curto. É preciso acordar, mas ainda não é tarde para fazer essa disputa”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Guerra santa”
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