Política
Banho de votos
As grandes confecções surfam na onda das toalhas politizadas e roubam mercado dos ‘camelôs socialistas’


São quase 9 da manhã e Antônio Lima está preparado para mais uma jornada de trabalho na Freguesia do Ó, na Zona Norte da capital paulista. Em uma movimentada praça, o vendedor ambulante estende em um varal réplicas de bichos de pelúcia da Disney e camisetas de clubes do futebol. Os produtos costumavam ter boa saída, mas há tempos perderam a liderança no ranking de vendas. Agora, os itens mais disputados de seu varal são as toalhas estampadas com os rostos de Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula. Por módicos 30 reais, os eleitores aderem ao “banho politizado”, a mais nova febre de São Paulo – e de outras tantas capitais pelo Brasil afora.
Seguindo a tendência captada pelas pesquisas de intenções de voto, Lula tem sido um melhor garoto-propaganda do que o atual ocupante do Palácio do Planalto. Nem por isso o “marreteiro”, como o migrante cearense define o seu ofício, está com a vida mansa. “Antigamente, conseguia ganhar bem mais. Agora, trabalho só para comer, nem as dívidas consigo pagar”, lamenta Seu Antônio, que vive na Vila Brasilândia há 36 anos.
O ambulante figura entre os 73% dos brasileiros que tiveram seus rendimentos solapados pelo alto custo de vida no último ano, segundo recente pesquisa Ipsos. Seu Antônio não acredita, porém, que a pandemia seja a única responsável pela disparada dos preços. “Não era para as coisas estarem tão caras. Quem ganha um salário mínimo e tem condições de comer carne? Hoje em dia, o trabalhador não pode mais nem encostar num bar para tomar uma cerveja”, comenta, decepcionado.
A concorrência no ramo não anda nada fácil. Para auferir lucros maiores, é preciso investir em arrojadas estratégias de marketing. Foi o que fez Saulo Adriel em um dos pontos mais movimentados da cidade, a Avenida Paulista. Em vez de simplesmente expor os produtos no varal, ele inovou com a criação do “Data Toalha”, uma lousa na qual cada comprador acrescenta o seu voto no candidato escolhido – depois de adquirir a toalha, claro. “O resultado da placa é real. Está bem polarizada essa eleição”, propagandeia. “Fui para Camboriú, Floripa e Curitiba, e lá vendo mais toalhas do Bolsonaro. Aqui, em São Paulo, estão saindo mais as do Lula.”
Adriel define-se como “anarcocapitalista”, seguidor de uma doutrina que prega uma espécie de capitalismo sem presença alguma do Estado. “O governo sempre impõe burocracia e formas de impedir o crescimento do microempreendedor, enquanto muita gente que já está lá em cima, estabelecida, se beneficia da ajuda estatal. Até para trabalhar eu preciso de alvará”, diz o camelô, ao explicar sua exótica ideologia.
O Data Toalha vem atraindo clientes que não têm o hábito de comprar itens no mercado informal. É o caso de Júlia Andrade, estudante de Relações Internacionais que ajudou a engordar o placar em favor de Lula, em meio ao frenesi da Paulista. “É a primeira vez que compro uma toalha dessas. Estou esperançosa, não por muitos motivos, mas estou”, comenta a jovem eleitora, que diz não temer um golpe de Estado. “Apesar das ameaças de certos grupos políticos, a maioria não aceitaria o desrespeito às urnas.”
Nem todos têm motivos para celebrar. Diante da nova tendência, a indústria passou a produzir em larga escala produtos que antes eram manufaturados por pequenos comerciantes, como o “camelô socialista” Marco Antônio Ferraz. Jornalista de formação, ele não conseguiu mais recolocação nas redações após completar 60 anos de idade. Em 2015, investiu as parcas economias em uma pequena estamparia na Barra Funda, a Zurdo Camisetas, que hoje emprega quatro homens trans. Com a onda do “banho politizado”, Ferraz viu-se, porém, diante de uma concorrência feroz.
“Isso deixou de ser um produto vendido apenas por militantes ou camelôs socialistas, como eu. As toalhas passaram a ser confeccionadas em grande escala, coisa que não conseguimos fazer. E tem muita empresa grande fabricando bandeiras e até isqueiros”, lamenta. “Deixei de vender toalhas, devido à competição desleal das confecções do Brás.”
Pela internet, o comerciante diz vender uma dezena de camisetas politizadas por dia. Em manifestações com a presença de Lula, o número salta para 500 unidades. Sem o líder petista, gira em torno de 100. “Só montamos a nossa barraquinha em atos públicos, porque, se eu me instalar na Praça da Sé ou na República, o rapa vem e toma tudo. Durante os protestos, o público nos defende”, conta.
Uma das primeiras aparições públicas das toalhas de candidatos ocorreu no último Lollapalooza, uma das edições mais politizadas do festival. Pouco antes de encerrar sua apresentação, a cantora Pabllo Vittar brandiu o que, inicialmente, foi descrito como uma bandeira de Lula. Somente mais tarde soube-se que era uma toalha entregue por um fã. De lá para cá, os adereços tornaram-se onipresentes. Até mesmo a presidenciável Simone Tebet, do MDB, a ostentar entre 2% e 4% das intenções de voto, segundo diferentes pesquisas, acabou contemplada nas estampas.
Nas redes sociais, as provocações envolvendo as toalhas não cessam. Um vídeo viral mostra, por exemplo, um cachorro caminhando sobre duas estendidas no gramado, uma de Lula e outra de Bolsonaro. O cão vira-lata cheira ambas, mas escolhe a do ex-capitão para aliviar a bexiga. Para o sociólogo Gabriel Rossi, especialista em marketing político da ESPM, a febre das toalhas revela, em certa medida, o esvaziamento do debate político no Brasil. “Atualmente, as campanhas estão fortemente alicerçadas no personalismo, não exatamente nas propostas dos candidatos.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Banho de votos”
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