

Opinião
A flecha cortou a escuridão
No meu sonho, de início um pesadelo, descobrimos que o monstro, embora feio, era de papelão. Tóxico e perigoso, sim. Mas mole e sem solução


Hoje sonhei como um danado. Sonho confuso, impressionante e bizarro, repleto de criaturas da mente. Sonho grande e misturado. Pedaços desencontrados, um fragmento de visão. Restos diurnos, trechos reverberados, estilhaços do passado a tecer algum futuro.
No início, por horas sem fim, apenas um pesadelo torpe e difuso. Era meia-noite de lua nova e, numa água viscosa e fétida, algo nefasto se movia: um monstro violento e faminto, meio verde, meio marrom, prestes a emergir do fundo da lagoa. Do lodaçal profundo, o horror espreitava. Um medo fora de tom estendeu-se pela noite. O Apocalipse. O Armagedom.
Esta cena durou uma eternidade, mas, finalmente, quando a madrugada começava a findar e surgiam os primeiros raios de sol, algo novo aconteceu. No canto esquerdo do cenário, um homem fazendo troça rimou, ao ritmo do pandeiro, uma glosa gostosa: isso não vai me comprar, isso não vai te salvar, isso não vai me comprar, isso não vai te salvar.
Esse homem era um feirante da boca rica que vendia quiabo, maxixe e limão. Ele foi rimando e trovando até que surgiu do chão, bem de mansinho, um senhor magrinho dançando coco, no sapatinho, o medo apartado dali. Potente e charmoso, ele dançava um outro sonho, uma outra emoção.
Nisso chegaram Beta, Bela, Fernanda e Mano, todos de faixa amarela para saudar o preto velho que mora lá. Seu nome era Moreira e ele pitava pango de Angola embaixo da gameleira, comendo araçá. Chegaram Lia e Daiara, Chico e Chicão, Aílton e Conceição, entoando o mesmo verso, cantando a mesma canção. Chegaram Janja e Jamelão, Mário e Lu, Ceci e Ju e toda a turma do fundão. Só depois chegou João.
Se abraçaram, cantaram e chamaram até que assomou na esquina um afoxé colorido. Era o saudoso Mestre Moa que chegava sorrindo, com a alegria dos meninos e o axé da cabaça. Tudo passa. Tocou seu atabaque e seu sino, a roda girou roseira e, do lodaçal, emergiu uma vitória-régia brasileira.
Em cima da flor enorme, um velho barbado e seminu sentava-se tranquilamente em posição de lótus – e seu corpo inteiro era azul. De olhos fechados e sorriso nos lábios, sonhava o nosso destino. Sonhou uma flor de buriti da qual emanava uma revolução de crianças plenamente dedicadas ao melhor de si. Sonhou prisões esvaziadas, escolas em ebulição – com professoras bem pagas e incentivo à formação. Sonhou pretas e pretos em festa, indígenas em celebração. Uma nação multiétnica depois de feita a reparação. Bons empregos para todos, forte rede de proteção.
Muita atenção à saúde, com foco na alimentação. Feijão, macaxeira e taioba. Mangaba, bacuri e melão. Amazônia de pé, proteção. Pantanal, Cerrado e Caatinga: Sertão. Universidade aberta, poderosa e com tesão. Ônibus elétrico, metrô acessível, bicicleta sempre que possível, poesia na estação. A ciência na cuca do povo, a arte do povo nas praças, a dança do povo nas pernas, o povo na televisão. A “frátria” amada em união. O sonho em flor rompendo o chão.
Mas então surgiu a sombra, a tempestade, o tufão. Os raios rasgavam o céu, as nuvens cobriam o chão. Era o monstro da lagoa, furioso e sem razão. Ele rugia com os dentes à mostra, com seu bafo de dragão: a maldição não para nunca! Se entreguem à morte e à escravidão! Se entreguem à doença e à dor! Se entreguem à poluição! A maldição está bem viva: quem nasceu na América e na África jamais será feliz, até a última geração!
E foi então que o céu se abriu e a lagoa, transbordando, virou mar. A vespa zuniu no ar, da flor nasceram coqueiros e de cada coco saiu um jaguar. Espíritos guardiões baixaram em revoada, o vento soprou sobre a manada e o tempo rodopiou em cada mão. Das bocas de cada jaguar saíram alertas de atenção: chegou a hora da onça beber água, chegou o levante da nação. E aí surgiu Mestre Bule-Bule, com seu cordel, viola e gibão: Deus é bom e gosta da gente! Chega de grito e confusão.
Assim as máscaras caíram e todos perceberam que o monstro, embora feio, era de papelão. Sujo, tóxico e perigoso, sim. Mas mole, podre e sem solução. Mero rejeito de esgoto, dejeto humano do lixão. Verde, opaco e marrom, mas feito de papel crepom.
Quando o céu, de repente, clareou à nossa frente, o monstro verde-oliva explodiu, feito bolha de sabão. O som saiu da boca do sapo e a flecha cortou a escuridão. A jibóia comeu o mito, o dia nasceu bonito, e despertei de supetão.
Vai passar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A flecha cortou a escuridão”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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