Cultura
A redenção da pré-história
Em ‘O Despertar de Tudo’, David Graeber e David Wengrow procuram fazer mais que reescrever o passado


Lançado no ano passado em língua inglesa e agora traduzido no Brasil, o livro O Despertar de Tudo anunciou que a maior parte do que pensamos saber sobre a história humana está errada. Seus autores, David Graeber e David Wengrow, apontaram a história consagrada, repetida por escritores como Jared Diamond, Yuval Noah Harari e Steven Pinker – a de que durante a maior parte da pré-história vivemos em pequenos grupos igualitários de caçadores-coletores, e foi apenas com a revolução agrícola, há cerca de 12 mil anos, que adotamos formas mais amplas de organização social, levando a comunidades complexas e hierárquicas. Tudo isso, eles argumentam, é baseado em informações ultrapassadas.
Em seus livros campeões de vendas – Colapso, Sapiens e Os Anjos Bons da Nossa Natureza –, aqueles autores se basearam fortemente em descobertas arqueológicas e antropológicas, embora nenhum deles seja arqueólogo ou antropólogo. Por outro lado, Graeber, que morreu há dois anos, foi considerado por muitos um dos principais antropólogos de sua geração. E o coautor Wengrow é um arqueólogo respeitado. Ambas as disciplinas têm sido alvo de desprezo acadêmico, descartadas como opções “fáceis”, com um pé nas ciências e outro nas “humanidades”. A dificuldade para obter evidências empíricas comuns a ambos os campos é a causa de muita interpretação imaginativa, dizem os críticos.
O Despertar de Tudo argumenta que, se há criação criativa de mitos, ela foi realizada com mais frequência por profissionais de outras áreas – economistas, psicólogos e historiadores –, que ignoraram a erudição moderna e usaram estudos antigos para elaborar uma imagem imprecisa do desenvolvimento humano. Segundo Graeber e Wengrow, essa imagem vem em duas formas diferentes, que equivalem à mesma coisa. Ou é desenhada por “neo-hobbesnianos”, como Pinker, que argumentam que a civilização moderna, particularmente após o Iluminismo, é uma história de progresso para longe de nossas origens brutais e desagradáveis. Ou por “neo-rousseaunianos”, como Diamond e Harari, que associam o progresso civilizatório à perda da liberdade. Mas ambos os campos, dizem os autores, endossam a ideia de determinismo histórico, segundo a qual os humanos passaram inexoravelmente de moradores de cavernas a motoristas de carros, de semeadores a cidadãos.
O DESPERTAR DE TUDO. De David Graeber e David Wengrow. Tradução: Cláudio Marcondes e Denise Bottman. Companhia das Letras (696 págs., 119,90 reais)
Graeber e Wengrow rejeitam essa abordagem teleológica e, em vez disso, situam a ênfase por mudança na escolha humana. Assim, eles argumentam, nossa pré-história não foi uniforme, mas composta de uma miríade de arranjos sociais, alguns a envolver grandes cidades, alguns monárquicos, alguns igualitários, alguns com trabalho escravo. Durante muito tempo após a chegada da agricultura, eles afirmam, não houve um modelo fixo de organização comunitária, mas uma rica diversidade de sociedades, usando a agricultura, mas não a sucumbir às suas demandas sociais arregimentadas.
O livro procura fazer mais que reescrever o passado. Também quer usar esse passado para fornecer inspiração política para hoje. Se um verdadeiro senso de liberdade na forma como nos organizamos foi fundamental para a nossa pré-história, dizem eles, talvez a pré-história seja a chave para a nossa libertação no futuro. Ou como diz a campanha publicitária, empregando uma frase que Graeber gostava de usar: “É hora de mudar o rumo da história, começando pelo passado”. O que não há dúvida é que o livro conquistou a imaginação do público, tornando-se um best seller internacional que já foi traduzido para 30 idiomas. Ele entrou na maioria das listas de livros do ano em 2021 e foi finalista do Prêmio Orwell de textos políticos. Apesar de toda a sua aclamação, The Dawn of Everything também atraiu algumas críticas pontuais, com várias sugestões de que os autores entenderam mal ou deturparam seu extenso material de pesquisa e, especificamente, fizeram afirmações que não eram sustentadas por evidências.
Alguma dessas críticas deu a Wengrow uma pausa para pensar?
“Certamente, estou aberto a críticas, quando elas tratam do que escrevemos”, diz ironicamente. “Ainda não vi nada que me faça parar da maneira que você sugere.”
Como o livro virou uma bola de neve, diz, ele não teve tempo, ou talvez a inclinação, para acompanhar todas as críticas e reações. Uma resenha que sabemos que ele leu, porque escreveu uma resposta, foi a de Kwame Anthony Appiah, na New York Review of Books. Intitulada Digging for Utopia (Escavando pela Utopia), ela acusa os autores de apresentar argumentos ideologicamente orientados em desacordo com os estudos que citam.
Os críticos apontam erros factuais na obra e um viés militante da dupla![]()
Appiah é um filósofo e teórico cultural, portanto, é a base política do livro o que mais lhe interessa. Os autores afirmam que o que eles chamam de “metanarrativa histórica padrão” sobre o progresso da civilização humana foi inventada em grande parte para excluir a “crítica indígena” dos povos nativos que se opunham à cultura e à prática do colonialismo. Appiah sugere que, para chegar a essa conclusão, eles tiveram de ignorar o principal fator do evolucionismo social.
“Graeber e Wengrow podem estar completamente errados em sua história intelectual, é claro, e completamente certos sobre o nosso passado neolítico”, escreve ele. “No entanto, seu modo de argumentação se apoia fortemente em algumas estratégias retóricas. Uma é a falácia da bifurcação, na qual somos apresentados a uma falsa escolha entre duas alternativas mutuamente exclusivas.” Então, ele passa a detalhar o que, segundo diz, são discrepâncias entre as fontes citadas e as conclusões a que os autores chegam. Wengrow escreveu uma resposta a Appiah no NYRB, na qual defende a tese dele e de Graeber, à qual Appiah respondeu com mais alegações de má interpretação. O filósofo concluiu, no entanto, com a celebração do “trabalho de dois estudiosos notáveis” que “em quase todas as páginas é energizado por sua inteligência, imaginação e senso de malícia”.
Apesar dessas palavras calorosas, as críticas não foram totalmente esquecidas. Wengrow não soa tão amargo quanto confuso. “Anthony Appiah o leu como um livro utópico”, diz. “Acho difícil entender isso. Parece tão antiutópico quanto você poderia imaginar.” “Utópico” é, provavelmente, a palavra errada. Os autores fazem questão consciente de rejeitar a romantização de Rousseau do “nobre selvagem”. Mas é justo dizer que muitas de suas caracterizações de formas antigas de organização social tendem a ser mais progressistas, ou projetam a sociedade ocidental moderna na luz mais desfavorável.
Outro estudioso, o historiador David A. Bell, criticou Graeber e Wengrow em seu argumento de que o Iluminismo foi inspirado em grande parte pela “crítica indígena” encontrada pelos primeiros colonialistas. Bell afirmou estar “chocado” com o entendimento de Graeber e Wengrow do Iluminismo francês. Ele referiu-se a “uma espantosa coleção de erros” e acusou os autores de chegarem “perigosamente perto da negligência acadêmica”. O foco principal da reclamação de Bell concentra-se na obra do Barão de Lahontan, nobre francês que escreveu um livro baseado em suas viagens chamado Dialogues Avec le Sauvage Adario. Graeber e Wengrow sustentam que Adario, que faz uma crítica astuta da perspectiva europeia e oferece visões progressistas sobre religião, é realmente apenas um pseudônimo para Kondiaronk, um diplomata e guerreiro nativo norte-americano da vida real, conhecido por seu intelecto e sua capacidade de debate. Eles chegam a sugerir que os argumentos de Adario/Kondiaronk foram fundamentais para moldar o Iluminismo francês. Bell acredita que esse é um erro flagrante que decorre de uma falsa compreensão da literatura do século XVIII, que muitas vezes usou indígenas para transmitir as opiniões progressistas da época.
Wengrow diz estar muito ciente dessa tradição, e não acredita que os Diálogos façam parte dela. “Acho que comparando Lahontan com as Viagens de Gulliver, o professor Bell deu um passo para o precipício, do qual agora poderá ter de se extrair”, diz ele, entre risadas. Se Wengrow está incomodado com esses ataques, não demonstra. Mas ele admite que a experiência de estar sujeito a uma atenção crítica tão feroz lhe deu certa simpatia por nomes como Pinker e Diamond, porque entende que eles são “condenados” por serem best sellers, apesar dos esforços intelectuais que aplicam em seus trabalhos. Dito isso, ele não se arrepende de admoestá-los por suas “ideias terrivelmente antiquadas sobre a pré-história humana”. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
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