Editorial
“Bando de corja”
A definição de um baiano velho e sábio contempla Bolsonaro e sua polícia e os ladrões que infestam o Brasil, sem esquecer muitos políticos. E a minoria rica


Dó é personagem deste enredo. Nascido na região de Vitória da Conquista, batizado Políbio, desde a infância todos o conheceram com o nome da primeira e última nota da escala musical. O pai foi autor de uma inesquecível definição de quem vale menos que nada. Dizia, para qualificá-lo, que se tratava de um “bando de corja”, vasto epíteto para adjetivar um ou mais indivíduos, conforme as circunstâncias. Dó eu conheço faz mais de meio século, que ele, bom no volante, levou a mim, jejuno em matéria, para sempre proibido pela consciência a dirigir veículos automotores.
Dó me conduziu ao longo de mil rotas. Na noite de domingo 31 de julho ligou-me para avisar da irrupção no meu prédio por um grupo de assaltantes dispostos a invadir três apartamentos. Um bando de corja. Tratava-se de um modo inédito até então para ele e para mim: ladrões bem trajados e de pele branca haviam alugado um apartamento há muitos dias e, de repente, ligaram pelo interfone para o porteiro naquele momento. Avisavam da chegada de amigos. Entraram, e aí compareceu a desgraça.
Recomendou Dó: “Feche com chaves e pitocos todas as saídas da sua casa”. Obedeci, está claro. O bando agiu com presteza e eficácia, mas a polícia foi chamada pelo zelador e a história acabou com a prisão dos assaltantes. Eu destranquei as saídas e dormi tranquilo. Não é episódio isolado. Pelo contrário, assumiu uma dimensão federal. Recentemente, a polícia do Espírito Santo desbaratou uma dessas quadrilhas. Identificados os componentes do bando, após a prisão da paraguaia Tamara Romina Ramos Dimas, de 19 anos, bem-sucedida ao despistar os porteiros, apresentando-se como moradora, no bairro Mata da Praia, em Vitória.
… dispensam legenda – Imagem: Mauro Pimentel/AFP
A partir da prisão de Tamara, os investigadores identificaram outros 11 integrantes do grupo, com históricos de assaltos a condomínios em cinco estados. Multiplicam-se as modalidades desses ataques criminosos e está no topo o furto de smartphones, para aplicação de golpes financeiros. Nas mãos dos assaltantes os celulares servem para acessar aplicativos de bancos e fazer empréstimos e transferências via Pix e o pagamento de boletos, entre outros propósitos fraudulentos.
É um panorama de violência de dimensão nacional e não há como os noticiários no vídeo, todos eles, se esmerarem na cobertura desta blitz, na qual não somente o roubo é destaque. Há espaço para a tragédia familiar, grave e dolorosa, o feminicídio. Cenário terrificante de um Brasil à matroca. O bolsonarismo tem seu papel neste entrecho e a pobreza crescente é fator determinante. O desequilíbrio social transforma a costumeira distância entre ricos e pobres em abismo sem-fim.
Nesta mesma edição, o editor de Economia Carlos Drummond conta mais a história dos poucos que enriquecem, nacionais e estrangeiros, enquanto a larguíssima maioria fica à míngua. Parece evidente que, no fim desta linha, quando exatamente não se sabe, o confronto será inevitável. A velha cena que na calada da noite mostrava figuras esquálidas a procurar em sacos de lixo algo comestível, as sobras dos abastados, assumiu feições bem mais assustadoras.
Ganhou vez o crime organizado, espécie de máfia particular, sindicato do crime. É o resultado inescapável da ausência do Estado de Bem-Estar Social, a funcionar como a necessária proteção dos cidadãos. Infelizmente, não passamos das quimeras, de sonhos impossíveis. O passado agora é presente e nada indica se deixará de ser o futuro. Bolsonaro, a resultar de um alude de oportunidades perdidas, insiste impávido no culto à violência. E no curto prazo a única esperança é sempre Lula. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ““Bando de corja””
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