Sociedade
Terrivelmente engajadas
Feministas evangélicas buscam romper o silêncio sobre temas como a descriminalização do aborto nas igrejas


O debate sobre o aborto e a violência de gênero ganha contornos cada vez maiores no meio evangélico. Embora a maioria dos pastores e líderes religiosos trate do tema sempre sob o viés conservador, coletivos de mulheres têm procurado furar o bloqueio das ideias progressistas nas igrejas. Em 2018, uma pesquisa conduzida pela teóloga Valéria Vilhena, em seu doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, revelou que as evangélicas são as principais vítimas da violência doméstica. “Na pesquisa, 40% das entrevistadas admitiram sofrer agressões físicas ou verbais de seus companheiros”, comenta a pesquisadora. E foi a partir dessa realidade que os coletivos de fiéis feministas começaram a se organizar para o debate.
Em 2020, um clipe musical interpretado por uma cantora gospel mostrava uma mulher vítima de agressões do marido, mas a intérprete dizia “apenas orar” pela recuperação espiritual do companheiro violento. Foi o que bastou para um grupo de diferentes igrejas se reunir e criar o Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil, hoje presente nas cinco regiões do País. “Desde então”, explica a cientista social Simony dos Anjos, doutoranda em Antropologia pela USP, “o Mosmeb propõe-se a realizar um trabalho para a formação política de mulheres evangélicas, para discutir a fé libertária que respeite seus corpos.” O coletivo está presente em manifestações e promove reuniões sobre temas como racismo, machismo, teologia feminista e aborto. Sem tabus nem temas proibidos.
No fim de junho, a interrupção voluntária da gestação voltou a se sobressair nas discussões. Em Santa Catarina, uma menina de 11 anos foi estuprada, mas a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou induzir a criança a desistir do procedimento, autorizado pela lei. Esse fato, comenta Simony, revelou que, embora os fundamentalistas tenham defendido a postura da magistrada, um número grande de evangélicas, que não defendem pautas feministas e pessoalmente são contrárias ao aborto, mostrou-se solidário à menina estuprada e compreendeu suas razões para pôr fim à gravidez. “Penso que esse debate entre os evangélicos tem várias perspectivas. A primeira é aquela que defende a proibição do aborto em todas as suas condições. A segunda defende a manutenção da lei atual, e um terceiro grupo defende a ampliação da permissão do aborto previsto em lei.”
“Nossa fé não pode interferir nas liberdades laicas das mulheres”, diz Simony dos Anjos
Simony acredita que, apesar da divisão, a maioria dos evangélicos convive bem com a atual legislação, que autoriza o aborto apenas em casos de estupro, risco de morte materna ou feto com anencefalia. O nó górdio está no grupo de fiéis progressistas que defende o procedimento sob a perspectiva da saúde pública e dos direitos humanos. Ou seja, o aborto seguro, universal e gratuito, acompanhado de uma legislação que garanta os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. “Eu não faria um aborto, mas defendo que todas as mulheres possam ter o direito de decidir sobre seus corpos. Não se trata de contrariar os princípios cristãos. Nossa fé não pode interferir nas liberdades laicas das mulheres”, explica a antropóloga.
O principal argumento dos coletivos na defesa desta pauta é tratar o aborto como uma questão de saúde pública. Um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch, com sede em Nova York, mostra que apenas 0,4% dos abortos realizados no Brasil são legais. Cerca de 416 mil brasileiras interromperam uma gravidez em 2015, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto. Somente 1.667 desses abortos foram realizados por médicos credenciados pelo SUS, conforme dados do Ministério da Saúde.
Pesquisas atestam que a morte de mulheres pela prática do aborto clandestino é a quinta causa de óbito materno no Brasil, sem contar os casos que deixam graves sequelas ou complicações. “Se o sistema de acolhimento das mulheres que desejam interromper uma gestação fosse humanizado, se essas mulheres pudessem escolher interromper gestações com segurança e com orientações de saúde sexual pós-interrupção, as mortes e complicações estariam próximas de zero”, observa Simony.
Sexismo. Muitas igrejas ainda relutam em aceitar mulheres em postos de liderança, lamenta o pastor Cláudio de Oliveira Ribeiro – Imagem: Arquivo pessoal
Foram essas estatísticas que modificaram a atuação parlamentar da deputada estadual gaúcha Sofia Cavedon, do PT. Professora, ela sempre priorizou a bandeira da educação. Mas, ao se deparar com os números divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde, ficou perplexa e ampliou a pauta. Entre 2018 e 2021, segundo dados oficiais, 1.983 adolescentes, entre 10 e 14 anos, foram mães no Rio Grande do Sul, média de 1,81 caso por dia. Com idades entre 15 e 19 anos, esse número chegou a 55.206 jovens, que representa 50 nascimentos por dia.
Agora, como Procuradora da Mulher na Assembleia Legislativa, Cavedon encabeça uma campanha de conscientização nas escolas. “Nossa luta é para que o Estado e o Ministério Público cumpram aquilo que a lei determina e as adolescentes tenham consciência de seus direitos. Não queremos nada mais que isso”, diz a deputada. A omissão do Estado começa pelo número de hospitais credenciados a realizar os procedimentos legais. São apenas nove estabelecimentos para uma população estimada em mais de 5,8 milhões de mulheres.
Não é fácil, porém, furar o bloqueio imposto por líderes religiosos conservadores. Os coletivos de evangélicas progressistas não são aceitos em muitas denominações, principalmente nas igrejas neopentecostais. “Somos desrespeitadas, temos nossa fé desacreditada e somos difamadas o tempo todo. Por isso, criamos esses grupos paraeclesiais”, conta Simony. “Neles temos acolhimento, conforto e encorajamento para continuar defendendo aquilo em que acreditamos. Sem debate, não vamos avançar.”
O aborto clandestino é a quinta maior causa de óbitos maternos no Brasil
Nas igrejas, as mulheres estão sujeitas às mesmas violências e assédios que podem ocorrer em qualquer outro ambiente, afirma. Mas, devido ao culto à moral e aos bons costumes, o silêncio é maior. “As mulheres acham que têm culpa, que pecaram e têm medo de denunciar. Assim, os abusadores acham nas igrejas um lugar seguro para transgredir.”
De acordo com Simony, muitas mulheres com problemas familiares ou de autoestima acabam sucumbindo a religiosos que conseguem manipular as inseguranças e a fé dessas mulheres. “Quando elas são abusadas, ficam com vergonha e se sentem pecadoras.”
Para a teóloga Valéria Vilhena, a ausência de pastoras mulheres contribui para a perpetuação desse cenário. “Quando essa mulher procura o seu pastor para dizer que está sendo assediada, normalmente não recebe apoio. O pastor aconselha mais submissão, em nome de Deus. ‘Seja sábia, fique calada, não enfrente’.” Pior, muitas igrejas não veem com bons olhos mulheres em cargos de liderança. “Elas são bem-vindas para ser mulheres de oração, de intercessão, para arrumar a igreja, para lavar toalhinha, para cuidar da limpeza e para fazer visitas.”
Cláudio de Oliveira Ribeiro, pastor metodista no Rio de Janeiro, reconhece que a ausência de lideranças femininas nas igrejas evangélicas é um tema que precisa ser debatido. “No caso do aborto, as mulheres podem estabelecer outro tipo de relação. Como pastor, sempre procurei fugir dessa visão comum e tentar ouvir mais do que falar, perceber mais do que julgar.” O religioso reconhece as dificuldades das igrejas em lidar com questões como a sexualidade humana, uma vez que, na maioria das vezes, elas são lideradas por homens marcados por mentalidades preconceituosas e intolerantes. Para ele, o debate das questões dos direitos sexuais e reprodutivos deve ser intensificado, principalmente no que diz respeito à descriminalização do aborto: “É preciso que as mulheres deixem de carregar o fardo da culpabilidade e da criminalidade.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terrivelmente engajadas”
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