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Terrivelmente engajadas

Feministas evangélicas buscam romper o silêncio sobre temas como a descriminalização do aborto nas igrejas

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Reação. As fiéis também são vítimas da violência de gênero, lembra a antropóloga - Imagem: Tomaz Silva/ABR e Annelize Tozetto
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O debate sobre o aborto e a violência de gênero ganha contornos cada vez maiores no meio evangélico. Embora a maioria dos pastores e líderes religiosos trate do tema sempre sob o viés conservador, coletivos de mulheres têm procurado furar o bloqueio das ideias progressistas nas igrejas. Em 2018, uma pesquisa conduzida pela teóloga Valéria ­Vilhena, em seu doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, revelou que as evangélicas são as principais vítimas da violência doméstica. “Na pesquisa, 40% das entrevistadas admitiram sofrer agressões físicas ou verbais de seus companheiros”, comenta a pesquisadora. E foi a partir dessa realidade que os coletivos de fiéis feministas começaram a se organizar para o debate.

Em 2020, um clipe musical interpretado por uma cantora gospel mostrava uma mulher vítima de agressões do marido, mas a intérprete dizia “apenas orar” pela recuperação espiritual do companheiro violento. Foi o que bastou para um grupo de diferentes igrejas se reunir e criar o Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil, hoje presente nas cinco regiões do País. “Desde então”, explica a cientista social Simony dos Anjos, doutoranda em Antropologia pela USP, “o ­Mosmeb propõe-se a realizar um trabalho para a formação política de mulheres evangélicas, para discutir a fé libertária que respeite seus corpos.” O coletivo está presente em manifestações e promove reuniões sobre temas como racismo, machismo, teologia feminista e aborto. Sem tabus nem temas proibidos.

No fim de junho, a interrupção voluntária da gestação voltou a se sobressair nas discussões. Em Santa Catarina, uma menina de 11 anos foi estuprada, mas a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou induzir a criança a desistir do procedimento, autorizado pela lei. Esse fato, comenta Simony, revelou que, embora os fundamentalistas tenham defendido a postura da magistrada, um número grande de evangélicas, que não defendem pautas feministas e pessoalmente são contrárias ao aborto, mostrou-se solidário à menina estuprada e compreendeu suas razões para pôr fim à gravidez. “Penso que esse debate entre os evangélicos tem várias perspectivas. A primeira é aquela que defende a proibição do aborto em todas as suas condições. A segunda defende a manutenção da lei atual, e um terceiro grupo defende a ampliação da permissão do aborto previsto em lei.”

“Nossa fé não pode interferir nas liberdades laicas das mulheres”, diz Simony dos Anjos

Simony acredita que, apesar da divisão, a maioria dos evangélicos convive bem com a atual legislação, que autoriza o aborto apenas em casos de estupro, risco de morte materna ou feto com anencefalia. O nó górdio está no grupo de fiéis progressistas que defende o procedimento sob a perspectiva da saúde pública e dos direitos humanos. Ou seja, o aborto seguro, universal e gratuito, acompanhado de uma legislação que garanta os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. “Eu não faria um aborto, mas defendo que todas as mulheres possam ter o direito de decidir sobre seus corpos. Não se trata de contrariar os princípios cristãos. Nossa fé não pode interferir nas liberdades laicas das mulheres”, explica a antropóloga.

O principal argumento dos coletivos na defesa desta pauta é tratar o aborto como uma questão de saúde pública. Um relatório publicado pela ONG ­Human Rights Watch, com sede em Nova York, mostra que apenas 0,4% dos abortos realizados no Brasil são legais. Cerca de 416 mil brasileiras interromperam uma gravidez em 2015, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto. Somente 1.667 desses abortos foram realizados por médicos credenciados pelo SUS, conforme dados do Ministério da Saúde.

Pesquisas atestam que a morte de mulheres pela prática do aborto clandestino é a quinta causa de óbito materno no Brasil, sem contar os casos que deixam graves sequelas ou complicações. “Se o sistema de acolhimento das mulheres que desejam interromper uma gestação fosse humanizado, se essas mulheres pudessem escolher interromper gestações com segurança e com orientações de saúde sexual pós-interrupção, as mortes e complicações estariam próximas de zero”, observa Simony.

Sexismo. Muitas igrejas ainda relutam em aceitar mulheres em postos de liderança, lamenta o pastor Cláudio de Oliveira Ribeiro – Imagem: Arquivo pessoal

Foram essas estatísticas que modificaram a atuação parlamentar da deputada estadual gaúcha Sofia Cavedon, do PT. Professora, ela sempre priorizou a bandeira da educação. Mas, ao se deparar com os números divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde, ficou perplexa e ampliou a pauta. Entre 2018 e 2021, segundo dados oficiais, 1.983 adolescentes, entre 10 e 14 anos, foram mães no Rio Grande do Sul, média de 1,81 caso por dia. Com idades entre 15 e 19 anos, esse número chegou a 55.206 jovens, que representa 50 nascimentos por dia.

Agora, como Procuradora da Mulher na Assembleia Legislativa, Cavedon encabeça uma campanha de conscientização nas escolas. “Nossa luta é para que o Estado e o Ministério Público cumpram aquilo que a lei determina e as adolescentes tenham consciência de seus direitos. Não queremos nada mais que isso”, diz a ­deputada. A omissão do Estado começa pelo número de hospitais credenciados a realizar os procedimentos legais. São apenas nove estabelecimentos para uma população estimada em mais de 5,8 milhões de mulheres.

Não é fácil, porém, furar o bloqueio imposto por líderes religiosos conservadores. Os coletivos de evangélicas progressistas não são aceitos em muitas denominações, principalmente nas igrejas neopentecostais. “Somos desrespeitadas, temos nossa fé desacreditada e somos difamadas o tempo todo. Por isso, criamos esses grupos paraeclesiais”, conta Simony. “Neles temos acolhimento, conforto e encorajamento para continuar defendendo aquilo em que acreditamos. Sem debate, não vamos avançar.”

O aborto clandestino é a quinta maior causa de óbitos maternos no Brasil

Nas igrejas, as mulheres estão sujeitas às mesmas violências e assédios que podem ocorrer em qualquer outro ambiente, afirma. Mas, devido ao culto à moral e aos bons costumes, o silêncio é maior. “As mulheres acham que têm culpa, que pecaram e têm medo de denunciar. Assim, os abusadores acham nas igrejas um lugar seguro para transgredir.”

De acordo com Simony, muitas mulheres com problemas familiares ou de autoestima acabam sucumbindo a religiosos que conseguem manipular as inseguranças e a fé dessas mulheres. “Quando elas são abusadas, ficam com vergonha e se sentem pecadoras.”

Para a teóloga Valéria Vilhena, a ausência de pastoras mulheres contribui para a perpetuação desse cenário. “Quando essa mulher procura o seu pastor para dizer que está sendo assediada, normalmente não recebe apoio. O pastor aconselha mais submissão, em nome de Deus. ‘Seja sábia, fique calada, não enfrente’.” Pior, muitas igrejas não veem com bons olhos mulheres em cargos de liderança. “Elas são bem-vindas para ser mulheres de oração, de intercessão, para arrumar a igreja, para lavar toalhinha, para cuidar da limpeza e para fazer visitas.”

Cláudio de Oliveira Ribeiro, pastor metodista no Rio de Janeiro, reconhece que a ausência de lideranças femininas nas igrejas evangélicas é um tema que precisa ser debatido. “No caso do aborto, as mulheres podem estabelecer outro tipo de relação. Como pastor, sempre procurei fugir dessa visão comum e tentar ouvir mais do que falar, perceber mais do que julgar.” O religioso reconhece as dificuldades das igrejas em lidar com questões como a sexualidade humana, uma vez que, na maioria das vezes, elas são lideradas por homens marcados por mentalidades preconceituosas e intolerantes. Para ele, o debate das questões dos direitos sexuais e reprodutivos deve ser intensificado, principalmente no que diz respeito à descriminalização do aborto: “É preciso que as mulheres deixem de carregar o fardo da culpabilidade e da criminalidade.”  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terrivelmente engajadas”

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