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O dia da caça

Mais um herói da luta contra o apartheid é envolvido em escândalo de corrupção na África do Sul

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Imagem: Phala Phala Farms, Presidência da Africa do Sul e iStockphoto
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Foi uma semana movimentada para Cyril Ramaphosa, o afável presidente da África do Sul. Ele convocou seus 60 milhões de compatriotas a lembrar o legado de Nelson Mandela, falou em um fórum de investimentos realizado no “quilômetro quadrado mais rico da África” e prestou generosas homenagens a um alto funcionário do Congresso Nacional Africano, o partido no governo. Nada disso terá estressado o político veterano, prisioneiro do regime do apartheid da África do Sul e considerado o herdeiro de Mandela. Mas uma pequena notícia poderia: Ramaphosa foi ameaçado com uma intimação por um órgão de defensoria pública que investiga um escândalo que poderá representar séria ameaça à sua presidência.

“Ele foi empurrado para um canto. Esta é uma granada lançada em sua carreira política”, disse Ralph Mathekga, analista político e autor sul-africano. Os detalhes surpreendentes do que a mídia local chamou de Farmgate vazaram ao longo de meses e envolvem o presidente em uma trama que poderia ser tirada diretamente de uma das emocionantes séries policiais de tevê muito populares no país.

A história começa com uma queixa criminal apresentada por um ex-chefe insatisfeito do serviço de inteligência da África do Sul em uma delegacia de polícia de Johannesburgo, na qual detalha o roubo, há dois anos, de 4 milhões de dólares em dinheiro de uma fazenda de caça e gado de propriedade de Ramaphosa, na província de Limpopo, a duas horas de carro de sua residência nos Union Buildings, em Pretória, a capital administrativa. A divulgação da presença dessa quantia em moeda estrangeira na fazenda do presidente foi apenas o começo. Por razões que ninguém consegue explicar, o dinheiro estava escondido em sofás. Em vez de denunciar o roubo à polícia, policiais da força de proteção presidencial teriam sido enviados para localizar a quantia desaparecida. Depois de seguir o rastro para várias partes da África do Sul e da vizinha Namíbia, os homens do presidente encontraram e interrogaram os ladrões, mas depois teriam pago para eles se calarem. Uma empregada doméstica da fazenda também teria recebido dinheiro em troca de silêncio.

O sumiço de 4 milhões de dólares de uma fazenda põe em risco a reeleição de Cyril Ramaphosa

Até agora, Ramaphosa admitiu que o roubo ocorreu, mas disse que o dinheiro era a renda legítima de um leilão de gado premiado e que ele não fez nada de errado. Depois de perder vários prazos e de ser ameaçado com uma intimação, ele respondeu a 31 perguntas feitas pelo gabinete do defensor público, com mandato constitucional, na sexta-feira 22. “Não foi o caso de o presidente demorar muito para responder às perguntas, foi apenas o caso de ele ter uma agenda muito lotada, onde tinha várias prioridades para atender. Infelizmente, não pudemos atender a esta a tempo”, disse um porta-voz a repórteres.

A criação de animais para caça é um grande negócio na África do Sul e pode gerar altas receitas. Mas especialistas em comércio dizem que é raro alguém guardar dinheiro em casa, por medo de atrair ladrões violentos. Outros sugerem que o dinheiro deveria ser distribuído entre os integrantes do CNA para conquistar apoio, prática ilegal, mas comum. Apoiadores do presidente dizem que ele é vítima de uma campanha de difamação antes de uma provável disputa brutal para ganhar um segundo mandato como presidente do partido em dezembro, na conferência do CNA. Isso permitiria a ­Ramaphosa vencer um segundo mandato de presidente nas eleições de 2024. Como titular e um dos poucos políticos do CNA com apelo popular, ele é o favorito.

Abandono. Em Soweto, a vida continua difícil como era antes da ascensão do CNA – Imagem: iStockphoto

O dano causado pelo escândalo ­Farmgate é, no entanto, considerável. ­Ramaphosa foi eleito com um mandato para reparar os profundos danos causados às instituições e à economia sul-africanas por Jacob Zuma, cujo governo de nove anos terminou em meio a denúncias de corrupção sistemática e má gestão em 2018. Isso significa enfrentar inimigos que são muitos, e sem escrúpulos. A capacidade de Ramaphosa de fazer isso é seriamente prejudicada pela suspeita de que ele cometeu violações potencialmente graves da lei e dos códigos de conduta oficiais. Estas podem incluir a não divulgação de um crime, o uso indevido de fundos públicos, lavagem de dinheiro, evasão fiscal e muito mais.

Judith February, diretora da Freedom Under Law, ONG que trabalha para defender os valores democráticos e o Estado de Direito na África do Sul, disse que até agora apenas um lado da história do Farmgate foi ouvido. Embora tenha ignorado o defensor público durante semanas, Ramaphosa dispôs-se a comparecer perante autoridades do CNA para se explicar. “É muito difícil dizer o que ele fez de errado. Ele parece mais interessado em apaziguar o partido do que em ser transparente com o povo. Então parece um encobrimento amador… e isso tem sérias consequências para a integridade de nossas instituições”, disse February.

O escândalo chega em mau momento para Ramaphosa. Com o desemprego crescente, uma infraestrutura em colapso e um crescimento anêmico, até os apoiadores admitem que seu primeiro mandato foi decepcionante. A ­Covid, as inundações e a guerra na Ucrânia não ajudaram, nem a resistência feroz dos partidários de Zuma, que instigaram tanta agitação no ano passado que Ramaphosa a chamou de “insurreição”.

O escândalo Farmgate alimentou uma decepção mais ampla com o CNA e um sistema político que permitiu ao partido ficar 28 anos no poder. A tendência de ­Ramaphosa a evitar conflitos e buscar consenso, vista como uma grande força quando ele era um político mais jovem, agora pode ser uma fraqueza. Um inquérito judicial sobre corrupção no governo Zuma recentemente criticou Ramaphosa por não agir contra ou se manifestar como vice-presidente de 2014 a 2018. “No sistema político sul-africano, a capacidade de construir coalizões complexas é fundamental para conquistar cargos no topo, e Ramaphosa é muito bom nisso”, disse Anthony Butler, professor de estudos políticos na Universidade da Cidade do Cabo e biógrafo do presidente. “Mas a crise em que a África do Sul está hoje não precisa de coalizões, precisa de decisões. Simplesmente dizer as coisas certas para públicos diferentes apenas dá aos habitantes a sensação de que Ramaphosa não pode traçar um caminho a seguir.”

Cortes de energia em todo o país de até 12 horas por dia desde meados de julho e uma série de tiroteios em bares reforçaram a sensação de que o presidente é ineficaz ou mesmo inadequado.

Em Diepsloot, município pobre nos arredores de Johannesburgo, onde dezenas de milhares vivem amontoados em barracos de lata ou casas de cimento de um cômodo, havia sentimentos contraditórios. Poucos viram muita melhora em suas vidas nos últimos anos, e muitos dizem que estão em pior situação.

O Farmgate eclodiu em meio à alta da inflação e às sequelas econômicas da pandemia de Covid

O presidente nunca escondeu sua riqueza, estimada em 700 milhões de dólares, e rejeitou as críticas como racistas e hipócritas. Mas sua fortuna, adquirida durante uma década afastado da política depois de ser preterido como sucessor quando Mandela deixou a presidência, em 1999, às vezes provou ser uma fraqueza. Há dez anos a polícia matou a tiros 34 mineiros em greve de uma empresa na qual ele estava envolvido. O entusiasmo de ­Ramaphosa pela criação de animais de alto valor, incluído o gado da raça Ankole-Watusi, também atraiu críticas. Em 2012, ele desculpou-se por oferecer mais de 1 milhão de dólares por um touro Ankole-Watusi e um bezerro em um leilão, num país onde milhões vivem em profunda pobreza, mas rejeitou as críticas ao seu sucesso nos negócios como “grosseiras e racistas”.

Dez dias atrás, Ramaphosa prometeu anunciar reformas para acabar com a crise de energia, mas nenhuma foi apresentada. Suspeita-se que ele não conseguiu convencer altos funcionários do CNA de que o profundo envolvimento político e econômico do partido na indústria do carvão deve ser ao menos reduzido.

“Não parece haver qualquer urgência, porque são os eleitores do partido que ele está tentando atrair, e há quem agora mantenha um escândalo sobre sua cabeça”, disse February. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O dia da caça”

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