Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

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Alegria e tristeza

A emoção de voltar a ver um jogo na Vila Belmiro e a angústia de assistir à correria desenfreada

Alegria e tristeza
Alegria e tristeza
Foto: Ivan Storti/Santos FC
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Ao passar por São Paulo, não resisti e desci a serra para assistir a Santos e Botafogo na expectativa de reencontrar velhos companheiros e acompanhar um “clássico” sensacional, iludido pela memória de momentos inesquecíveis entre os dois melhores times que o nosso fabuloso futebol produziu em sua história.

O ambiente em torno do aconchegante estádio da vila famosa talvez tenha sido o melhor que possa recordar em minha longa lembrança de torcedor contumaz. Cheguei cedo. Desembarquei do ônibus de São Vicente que circula perto do estádio. Em frente à antiga entrada dos vestiários do time da casa, quase idêntico ao antigo Bar do Galhardo, agora do Alemão, começava a se reunir a torcida santista, enquanto uma senhora preparava um pernil enorme para fazer o concorrido e robusto sanduíche que matou minha fome de viajante sem almoço.

Na outra esquina, outro grupo de torcedores se formava num clima admirável de confraternização entre boa quantidade de moças e crianças, apesar do horário ingrato para um jogo de meio de semana num dia com chuvisco intermitente*. De posse do ingresso oferecido pelo amigo Rogério, filho do maestro Zito, o ponto de equilíbrio do Santos de seus melhores dias, dei a volta no estádio, passando por mais uma esquina de outro bar onde a Torcida Jovem santista se reunia em grande harmonia, preparando-se para o jogo promissor.

Era, bem verdade, praticamente um jogo de torcida única. Havia num canto da arquibancada um grupo de botafoguenses renhidos que fizeram valer sua presença. Chegamos às cadeiras situadas a pouca distância do gramado, ótimo lugar, dava a sensação de fazer parte do jogo, dentro do campo, mas… Aí “o bicho pega”. Mal começada a partida, torcedores vizinhos, notadamente torcedoras, esgoelavam-se aos gritos de palavrões escabrosos, comuns nas circunstâncias, embora sem consonância com o que acontecia em campo em termos de futebol, melhor dizendo, o que não acontecia.

Sem essa de saudosismo, mal iniciada a partida bateu a sensação de não querer mais ver jogos de futebol “profissional”, uma correria desenfreada, perde-ganha o tempo todo e número elevado de passes errados, provocados talvez pela marcação cerrada e o desperdício de uma quantidade brutal de força física e choques desordenados entre jogadores. O futebol tornou-se “perigoso”, um jogo de grande risco. Tenho insistido nestes últimos relatos, mas parece que chegamos ao auge dessa “noite dos desesperados”.

Pois bem, nem transcorrida uma semana, leio reportagem com as famosas análises de comentaristas de computadores, a justificar os resultados irregulares do Botafogo pelas porcentagens e números absolutos de jogadores entregues ao departamento médico, inclusive a quantidade de casos cirúrgicos. Não se fala no comportamento a que são levados os jogadores, ou melhor, “pilotos suicidas”, a julgar pela natureza dos choques descoordenados que levam ao extremo de traumatismos cranianos recorrentes, como o sucedido ao excelente zagueiro Cuesta. Passaram dos limites aceitáveis aquelas desculpas esfarrapadas de futebol ser um “esporte de contato”.

No jogo entre Chapecó e Grêmio, o time gaúcho teve seu lateral direito expulso depois de atingir com os cravos da chuteira o pescoço e o rosto, pasmem, do centro­avante catarinense de 2 metros de altura. As imagens devem servir de documentos.

Pobre do jovem “atleta”, nunca aceitei ser chamado assim, sempre fui jogador de futebol sem nunca desconsiderar a necessidade da forma física, mas nunca confundindo a tendência por um esporte. Uma bola não chega a pesar 1 quilo, por que então a necessidade de malhar com pesos de 50 quilos ou mais?

Outra reportagem destes dias pretendeu classificar os maiores, deveria ser os melhores, técnicos do futebol brasileiro. Estarrecedor olhar uma lista enorme sem constar os nomes de jogadores lendários que se destacaram por serem os armadores por excelência, pensadores do jogo, “cérebros do time” que quase nunca ou nunca mesmo tiveram oportunidade nas seleções brasileiras. Dois exemplos bastam, Zizinho e Didi. Triste, mas ficam claros os critérios da nossa sociedade a se revezar ao sabor dos poderosos da ocasião, os técnicos autoritários dissimulados como “disciplinadores”. Ajudam a entender a “saga brasileira”.

*A impressão que me ficou do ano em que passei em Santos foi essa de que choveu em todos os dias, a começar pelo sufoco da estreia no campo arenoso encharcado e coberto com aquela grama de folhas largas que exigia esforço redobrado. Felizmente, tudo saiu bem, mesmo com a alergia braba do clima frio e úmido na concentração da Chácara Nicolau Moran, às margens da Represa Billings. Restaram as amizades eternas que sempre foram o grande capital da minha carreira. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Alegria e tristeza”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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