Política
A chapa dos segredos
O comando da intervenção no Rio em 2018 credencia Braga Netto como sócio de Bolsonaro na reeleição


O PL decidiu oferecer de graça, via web, ingressos aos interessados em participar da convenção que oficializará a candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição, no domingo 24. A turma não se deu conta de que qualquer um poderia requisitar entradas, e eleitores de Lula se inscreveram, na tentativa de esvaziar o evento, como fizeram opositores de Donald Trump em um dos comícios da campanha norte-americana de 2020. O palco do ato é o ginásio Maracanãzinho, no berço do bolsonarismo, o Rio de Janeiro. Estado importante também na trajetória do escolhido pelo presidente para ser seu vice na chapa deste ano, o general da reserva Walter Braga Netto, um dos mais influentes militares no governo dos coturnos, conspirador contra as urnas eletrônicas, fomentador do fantasma de que fardados vão aderir a uma insurreição contra o resultado da votação de outubro.
Braga Netto não é carioca da gema. Nasceu em Minas Gerais, em 1956. Mas, como todo oficial do Exército, cursou a Academia Militar das Agulhas Negras, na cidade fluminense de Resende, onde foi contemporâneo de Bolsonaro (formou-se em 1978, um ano após o capitão). Três décadas e meia mais tarde, já no posto de general, acumulou experiência no Rio. De 2013 a 2019, integrou a equipe de planejamento da Olimpíada de 2016, responsável pela segurança da competição, e esteve à frente da 1a Região Militar e do Comando Militar do Leste, dois QGs situados no estado. Tornou-se ainda interventor federal na segurança pública em 2018, ano da vitória de Bolsonaro, missão pela qual recebeu à época elogios do presidenciável Ciro Gomes, recentemente ressuscitados nas redes sociais por Carlos Bolsonaro e Cia.
Não se sabe se, como vice, Braga Netto renderá votos ao capitão. Os aliados presidenciais no “Centrão” preferiam uma mulher na vaga, a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina, para tentar quebrar a rejeição feminina ao atual ocupante do Palácio do Planalto. Há pistas, porém, de que o general contribuiu para o triunfo do presidente na última campanha, graças ao serviço como interventor e à custa da desinformação do eleitorado. Currículo que o credencia para substituir na chapa de Bolsonaro o general da reserva Hamilton Mourão, o vice-presidente atual visto pelo capitão como desleal. Aliás, comenta-se em Brasília que Braga Netto é o vice de fato, a desempenhar funções em nome do presidente. “Hoje, o general Braga Netto é o homem mais poderoso do Brasil. Sabe tudo de Bolsonaro, e a história de Bolsonaro não é bonita. Me parece que o homem mais poderoso é aquele que tem o presidente da República nas mãos”, afirma o historiador Manuel Domingos Neto, especialista em Forças Armadas.
A atuação do general no estado coincide com as idas e vindas na investigação sobre as “rachadinhas”. Acaso?
Bolsonaro venceu o segundo turno no fim de outubro de 2018, mas só no início de dezembro, 40 dias depois, veio a público, em uma reportagem de O Estado de S. Paulo, a notícia de que a conta de sua esposa, Michelle, havia recebido 29 mil reais de um tal Fabrício Queiroz, ex-PM que administrara o gabinete de deputado estadual do primogênito de Bolsonaro, Flávio, eleito senador. A informação constava de um relatório do Coaf, órgão federal de combate à lavagem de dinheiro, anexado à Operação Furna da Onça. Esta havia ido a campo, em novembro, contra as “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio. “Rachadinha” é crime de peculato, embolso de verba pública por agente público encarregado de cuidar dela. Já com o governo Bolsonaro em curso, o suplente de Flávio no Senado, o empresário Paulo Marinho, revelaria que o clã presidencial tinha tomado conhecimento da operação no nascedouro, por meio de um policial federal, e manobrado para que não ocorresse antes da eleição.
A intervenção no Rio durou de fevereiro a dezembro de 2018. Braga Netto integrou as inteligências da Secretaria de Segurança Pública e das polícias Civil e Militar com a unidade local da Polícia Federal. O secretário de Segurança Pública, Richard Nunes, era um general designado por ele. A partir de abril, a PF no Rio teve no comando o delegado Ricardo Saadi, um dos pivôs da demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, em abril de 2020. “No primeiro dia em que o novo superintendente da Polícia Federal assumiu, o general Richard e ele, o Ricardo Saadi, assinaram um protocolo de troca de informações, de banco de dados, da integração de banco de dados”, contou Braga Netto em maio de 2018 ao Canal Livre, programa noturno da Band. Dessa forma teria o clã Bolsonaro descoberto a Furna da Onça? Bom para a rapaziada que a operação estourou só após a eleição, não?
Mourão corre em faixa própria e tornou-se inconfiável. Queiroz é o eterno fantasma a assombrar o clã Bolsonaro – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Romério Cunha/VPR
Em 22 de janeiro de 2019, primeiro mês de Bolsonaro no poder, a Polícia Civil e o Ministério Público estaduais realizaram uma operação, a Intocáveis, contra uma quadrilha de milicianos atuantes nas proximidades do condomínio onde Bolsonaro tem casa, na Barra da Tijuca. Entre os alvos, o capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, parceiro de Queiroz, ambos investigados no passado por assassinato. No futuro se saberia que, pelas mãos de Queiroz, a mãe e uma esposa de Nóbrega passaram pelo gabinete de Flávio e emprestaram contas e CPFs ao esquema das “rachadinhas”. Nóbrega era conhecido de Bolsonaro. Este o defendera no plenário da Câmara dos Deputados logo após um tribunal do júri ter condenado o PM por homicídio, em 2005. A pedido do pai, Flávio havia condecorado Nóbrega na Assembleia. Foragido da Intocáveis, o PM foi morto em um cerco policial na Bahia, em fevereiro de 2020.
Uma operação do porte da Intocáveis não nasce de repente. Leva tempo, requer inteligência, coleta de dados, de pistas. É razoável supor que começou a ser desenhada desde a intervenção no Rio e que Braga Netto e Nunes sabiam de algo. Novamente, bom para o clã Bolsonaro que a investida contra os milicianos não tenha ocorrido durante a campanha de 2018, certo? Após a posse do capitão, Nunes tornou-se chefe da Comunicação Social do Exército, em substituição ao general nomeado porta-voz presidencial, Otávio Rêgo Barros. Desde setembro de 2021, está à frente do Comando Militar do Nordeste. É um dos 17 integrantes do Alto-Comando do Exército.
Em 14 de dezembro de 2018, crepúsculo da intervenção, Nunes falou ao Estadão sobre um dos episódios mais marcantes (e trágicos) daquele ano no Rio, o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, e de seu motorista, Anderson Gomes. O crime ocorreu com menos de um mês de intervenção. Segundo o general, a causa teria sido a ameaça representada por Marielle aos negócios imobiliários de milicianos, em razão da conscientização popular que a parlamentar promovia. “A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área Oeste, na baixada de Jacarepaguá, problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas”, dizia Nunes. E arrematou: “Mais do que isso eu não posso dizer”.
Braga Netto, ao contrário do “desleal” Mourão, está alinhado com Bolsonaro na conspiração
Um dos crimes imputados à milícia de Adriano da Nóbrega era o de grilagem de terras em Rio das Pedras e Muzema, comunidades nas imediações de Jacarepaguá e do condomínio de Bolsonaro. No mesmo Vivendas da Barra morava o acusado de atirar em Marielle, o PM Ronnie Lessa. Ele e Élcio Vieira de Queiroz, PM que teria dirigido o carro na hora dos disparos, foram presos em 12 de março de 2019, terceiro mês de governo do capitão. A detenção resultou de ação conjunta da Polícia Civil, subordinada a Braga Netto e Nunes em 2018, e do MP. Bom para o bolsonarismo que a prisão não tenha ocorrido durante a eleição, certo?
“O assassino só foi preso depois da posse de Bolsonaro. Em 2018, a polícia não sabia disso? Imagine o Lessa preso durante a campanha?”, comenta o coronel da reserva Marcelo Pimentel de Souza, para quem a intervenção no estado é um episódio muito mal explicado. “Toda informação e inteligência policial do Rio de Janeiro, mapeamento de traficantes, de milícias, ficou sob o controle do general Braga Netto, que depois levou isso para o próprio Exército, ao assumir a chefia do Estado-Maior, em 2019.”
O Estado-Maior é o segundo posto na hierarquia do Exército, atrás apenas do comandante da tropa. Do cargo, Braga Netto pulou para a Casa Civil de Bolsonaro, em fevereiro de 2020. Sua chegada ao coração do governo representou a militarização total do Planalto naquele momento. Foi quando a pesquisadora Ana Penido, do Observatório da Defesa e Soberania Nacional, resolveu debruçar-se sobre o perfil dos assessores dos ministérios mais estratégicos do governo e constatou: 90% dos ocupantes eram das Forças Armadas. “O Braga Netto conhece toda a economia criminal do submundo do Rio, a economia que financiou as campanhas de vereador e de deputado do Bolsonaro e da sua família”, diz Penido.
Braga Netto era o interventor no Rio quando Marielle Franco foi assassinada – Imagem: Redes sociais
O general é hoje do comitê reeleitoral do presidente e no grupo há quem espere que ele funcione como um arrecadador para o PL. O partido tem 286 milhões de reais do fundo público eleitoral, o PT tem 499 milhões. No fim de junho, Braga Netto foi à Firjan, a federação das indústrias fluminense, e consta que tudo o que conseguiu foi criar confusão, não gerar recursos. Segundo O Globo, ele ameaçou, em linha com o chefe: sem voto impresso e auditado, nada de eleição. Um relato que o general nega, como tinha negado há um ano uma notícia idêntica do Estadão a respeito de um aviso que teria feito chegar ao presidente da Câmara, Arthur Lira, quando da votação (derrotada) da lei do voto impresso na Casa.
Braga Netto era, em 2021, ministro da Defesa, posto ocupado após a Casa Civil. Na Defesa, deu um show de negacionismo: em notas comemorativas do golpe militar de 1964 e em uma audiência pública na Câmara, negou que tenha havido ditadura. Ele é casado com a neta de um general de posição, no mínimo, dúbia na época do golpe. Armando de Moraes Âncora era chefe do 1o Exército, situado no Rio, e foi ministro interino da Guerra nos estertores do governo João Goulart. Coube a ele negociar com os golpistas do 2o Exército uma espécie de rendição de Jango. O filho de Âncora também era general e, na ditadura, foi adido militar nos Estados Unidos, nos anos 1970, posto que no início do governo Dilma Rousseff seria ocupado pelo homem dos segredos de Bolsonaro, Braga Netto.
Bem que o presidente, naquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020, dizia que seu sistema particular de informações funcionava. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A chapa dos segredos”
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