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Ao povo o que é do povo
A revolta popular provoca a renúncia do presidente Gotabaya Rajapaksa, símbolo de uma dinastia no Sri Lanka


O presidente do Sri Lanka, Gotabaya Rajapaksa, concordou em renunciar após um dia dramático durante o qual sua casa e seus gabinetes foram invadidos por manifestantes e a casa do primeiro-ministro foi incendiada. Em uma mensagem transmitida de madrugada pelo presidente do Parlamento, Mahinda Yapa, o presidente sitiado disse que deixará o governo em 13 de julho, para “garantir uma transição pacífica do poder”.
Foi uma vitória histórica para os manifestantes, que pedem sua renúncia há meses e se reuniram nas ruas de Colombo às dezenas de milhares no sábado 9, enquanto o país continua a lutar contra sua pior crise econômica desde a independência.
Mais cedo, o primeiro-ministro, Ranil Wickremesinghe, havia dito em uma reunião de líderes partidários que também renunciaria assim que um novo governo de todos os partidos fosse formado.
Em cenas extraordinárias no sábado, manifestantes romperam barreiras policiais e invadiram a residência oficial do presidente. Imagens confirmadas por relatos de testemunhas mostraram cidadãos subindo a grande escadaria do prédio da era colonial, entoando cantos que pediam a demissão. Enquanto os manifestantes invadiam os quartos e a cozinha e vasculhavam os pertences do presidente, muitos aproveitaram as acomodações luxuosas, depois de sofrerem nas últimas semanas uma extrema escassez de alimentos e combustíveis. Alguns foram vistos a preparar curry na cozinha, deitados em camas e sofás, a levantar pesos e correr na academia presidencial ou a saltar na piscina.
O presidente não estava em casa. Havia fugido na noite anterior sob proteção militar, e permaneceu escondido, enquanto os acontecimentos de sábado se desenrolavam. Rajith, 50 anos, disse que foi participar dos protestos pela falta de condições de alimentar os dois filhos pequenos. Ele falou de seu choque ao entrar na residência oficial e ver que, enquanto os cingaleses sofrem, “não faltava nada para o presidente. Vimos seus quartos de luxo, seu ar-condicionado, seu gás de cozinha. Ele tem até muitos ‘pets’ de raça”.
Grande parte da raiva e da culpa pela crise econômica do Sri Lanka foi dirigida ao presidente e à família Rajapaksa, dinastia política mais poderosa do país e ocupante dos cargos de presidente, primeiro-ministro, ministro das Finanças e vários outros no alto escalão no governo. Os Rajapaksa, que defendiam uma agenda ferozmente
nacionalista, são acusados de corrupção, de má gestão econômica e de levar o país à falência. Desde março, protestos generalizados pediam que os Rajapaksa, em particular o presidente, fossem removidos do poder e responsabilizados pelas terríveis circunstâncias econômicas enfrentadas pelos 22 milhões de habitantes.
Rajapaksa, um ex-militar acusado de crimes de guerra quando era secretário da Defesa, recusou-se a renunciar durante meses e foi o último da família a restar no governo. Sua renúncia marca o fim de duas décadas em que o clã dominou a política local.
A família dominava a política local há mais de duas décadas
Na noite do sábado 9, o clima nas ruas de Colombo ficou tenso quando os manifestantes violaram as barreiras de segurança e incendiaram a casa de Wickremesinghe, nomeado primeiro-ministro interino depois que Mahinda Rajapaksa, irmão mais velho do presidente e ex-presidente, foi forçado a renunciar, em maio. Ele também enfrentava pedidos de renúncia, devido a acusações de que apoiava o regime da família.
O ataque incendiário seguiu-se a um impasse de horas entre manifestantes e policiais diante da casa de Wickremesinghe, com a polícia a disparar cargas de gás lacrimogêneo contra a multidão. Vários jornalistas foram espancados pelos policiais e levados ao hospital, e uma declaração da Anistia Internacional no Sul da Ásia condenou o “ataque chocante”.
Apesar da escassez de combustíveis, dezenas de milhares de civis viajaram até o centro de Colombo na manhã de sábado, muitos requisitando caminhões e ônibus para participar do que se tornou o maior protesto contra o presidente. À medida que a multidão aumentava e empurrava as barreiras, a polícia começou a disparar gás lacrimogêneo. Mas não conseguiu conter os manifestantes furiosos, que se dirigiram à casa do presidente, primeiro derrubando as barreiras policiais e depois invadindo a propriedade palaciana, muitos carregando bandeiras do Sri Lanka e gritando slogans.
O gabinete do presidente, no bairro Galle Face, em Colombo, também foi tomado por milhares de manifestantes, que atacaram a segurança e as barricadas e invadiram o prédio, com as comemorações a continuar no seu interior até a madrugada. Há meses Galle Face tem sido o local de um acampamento de protesto contra o governo, onde os manifestantes vivem em tendas e se recusam a se mudar até que Rajapaksa renuncie.
Ruki Fernando, um ativista, disse ter viajado quase 160 quilômetros, da cidade de Kandy, para estar no protesto de Colombo. No caminho, ele viu pessoas nas rodovias, agarradas às traseiras de caminhões de carga, amontoadas em caminhões e de bicicleta, para chegar ao protesto, apesar da falta de transporte devido à crise de combustíveis. “Nunca vi uma revolta popular tão generalizada”, disse Fernando. “Houve uma sensação de conquista quando entraram na casa do presidente e na sua secretaria. São lugares mantidos no luxo com o dinheiro do povo, num momento em que o governo afirma não haver dinheiro suficiente para dar remédios, comida, combustíveis. É muito significativo politicamente que tenham sido recuperados pelo público.”
O Sri Lanka continua a lutar contra uma crise devastadora, na qual a economia entrou em colapso total e o governo não tem condições de importar alimentos, combustíveis e medicamentos. Todas as vendas de gasolina foram suspensas, as escolas fechadas e os procedimentos médicos e as cirurgias acabaram adiados ou cancelados por falta de medicamentos e equipamentos. A ONU alertou recentemente que o país enfrenta uma crise humanitária.
A inflação é recorde, 54,6%, e os preços dos alimentos aumentaram cinco vezes. Dois terços do país têm dificuldade para se alimentar. O Sri Lanka deixou de pagar suas dívidas externas em maio, que totalizam mais de 51 bilhões de dólares, e está em negociação com o Fundo Monetário Internacional para um apoio de 3 bilhões de dólares. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ao povo o que é do povo “
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