Mundo
Um degrau a mais
Boris Johnson não é um ponto fora da curva, mas o resultado da radicalização do Partido Conservador


Especialmente depois do caos dos últimos dias – e até mesmo, alguns diriam, do caos dos últimos anos – é fácil cair na armadilha de pensar que Boris Johnson é de alguma forma original entre os líderes conservadores. Isso pode ser verdade em relação ao seu caráter: sua extravagância, a tendência a desrespeitar as convenções e quebrar as regras, o narcisismo. Mas está longe de ser o caso quando se trata de suas ênfases políticas e sua estratégia eleitoral.
Johnson, de fato, é tanto uma culminação quanto uma aberração. Desde de Margaret Thatcher assumir a liderança, em 1975, o Partido Conservador tem se transformado, embora não necessariamente de forma linear, de uma organização convencional de centro-direita em uma que, em certos aspectos cruciais, se assemelha à direita radical populista. Johnson pode ter acelerado essa transformação, mas certamente não a iniciou.
William Hague é hoje um venerável (e muito perspicaz) colunista de jornal. Mas, entre 1997 e 2001, quando liderava os conservadores na oposição, ele viu-se caricaturado como um taxista skinhead – e não sem razão, argumentavam seus adversários. A abordagem quase arquetipicamente populista de Hague, que contrapõe “o povo” a uma elite metropolitana que não o entende, não o atende e secretamente o despreza, foi resumida em seu famoso discurso sobre a “terra estrangeira”. Na conferência de primavera dos Conservadores em Harrogate em 2001, ele procurou identificar o partido, em tons que poderiam ser facilmente confundidos com os de Boris Johnson (ou, nesse caso, de Nigel Farage), com “o bom senso decente e claro de seu povo”, aqueles que “acreditam em seu país”, “se orgulham do que o nosso país conquistou” e que estavam fartos de seus valores serem ridicularizados pelos Trabalhistas e aqueles que Johnson e seus asseclas hoje gostam de rotular de “acordados”.
“Falem sobre a Europa”, afirmou Hague, “e eles os chamam de radicais. Falem sobre impostos e eles os chamam de gananciosos. Falem sobre o crime e eles os chamam de reacionários. Falem sobre asilo e eles os chamam de racistas. Falem sobre sua nação e eles os chamam de Pequenos Ingleses.”
Depois vieram as promessas políticas, não menos importantes: “Acolheremos refugiados verdadeiros, mas seremos um porto seguro, não um toque carinhoso. Isso não é intolerância. É puro bom senso”. Morra de inveja, a escolha de Johnson para secretário do Interior, Priti Patel. A estrada para Ruanda, ao que parece, não começou nas praias de seixos de Kent, mas nas colinas verdes de North Yorkshire.
Nem todos no partido estavam felizes com Hague. De fato, o progresso dos Conservadores em direção ao populismo radical de direita poderia ter parado um pouco se Michael Portillo não tivesse falhado em sua tentativa de liderar o partido depois que Hague deixou o cargo. Em vez disso, temos Iain Duncan Smith, e depois Michael Howard e sua promessa de cortar impostos e os burocratas que permitiram que o politicamente correto enlouquecesse, bem como o cartaz sobre imigração “Você está pensando o que estamos pensando?”, que apareceu na campanha eleitoral de 2005, idealizada pelo homem de confiança de Johnson, Lynton Crosby.
Desde Margaret Thatcher, os tories inclinam-se ao populismo de direita
Então, quando Johnson tocou o alarme durante o referendo de 2016 com sua conversa sobre a adesão da Turquia à União Europeia, dificilmente foi algo que um conservador não tivesse feito antes. Ele simplesmente tocou mais forte e por mais tempo – e, naturalmente, depois mentiu a respeito.
É claro que o líder conservador mais afetado foi David Cameron, para quem o Brexit significou uma saída antecipada de Downing Street, embora feita (em contraste marcante com Johnson) voluntariamente e com sua dignidade ainda intacta. De fato, se alguém (a não ser talvez John Major) pudesse ao menos afirmar ser a aberração entre os líderes conservadores recentes, provavelmente seria Cameron, e não Johnson. Cameron quis convencer seu partido a parar de “falar tanto sobre a Europa” e mal mencionou a imigração em seus dois primeiros anos como líder.
Para Cameron, o caminho para o poder não estava no “homem da van branca” (o protótipo do trabalhista), mas na criação de um Partido Conservador que, ao selecionar uma nova geração de candidatos e suavizar seus tons estridentes, parecesse e soasse mais como a Grã-Bretanha contemporânea. E que recuperasse as perdas recentes do partido entre as fileiras em rápida expansão da classe média graduada.
Como grande rival de Cameron, Johnson pode ter ficado em segurança (ou supostamente em segurança) na prefeitura, mas de qualquer modo ele esteve observando e esperando – aprendendo exatamente o que cairia bem em todas as pequenas cidades, subúrbios e comunidades rurais fora da Londres liberal-esquerdista.
Infelizmente para Johnson, tendo enganado Cameron, seus melhores planos deram errado quando sua cobra de estimação, Michael Gove, inesperadamente se voltou contra ele, forçando-o a sair da disputa em 2016. Mas a vencedora foi outra suposta modernizadora convertida em linha-dura, Theresa May, que havia deixado de lado suas preocupações anteriores sobre os Conservadores parecerem “o partido desagradável”, enquanto seguia sua missão de criar um “ambiente hostil” a migrantes indesejados.
Ainda mais importante, foram ela e Nick Timothy (seu Dominic Cummings) que efetivamente moveram o partido em direção ao conservadorismo superpatriótico, retoricamente mais intervencionista que, apesar de ela ter perdido sua maioria parlamentar em 2017, colocou os Conservadores em distância próxima de tantos assentos que Johnson – com o mesmo tipo de abordagem, só que executada de forma mais eficaz e carismática – conseguiu vencer dois anos depois.
Nada vem do nada, nem Boris Johnson. É verdade que ele mostrou ter menos consideração que seus antecessores pelas normas democráticas liberais, bem como pelos sentimentos da comunidade empresarial (embora mesmo essa diferença possa ser exagerada). Ele não é, porém, um conservador diferente de todos. Johnson é apenas o mais recente representante de uma tradição cuja preocupante tendência ao populismo radical de direita seu sucessor achará difícil reverter, sempre supondo, é claro, que ele ou ela queira. •
*Tim Bale é professor de Política na Queen Mary University, em Londres.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um degrau a mais “
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