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A simbiose entre homem e máquina

Em ‘Crimes do Futuro’, Cronenberg retoma o corpo como lugar de experimentação

A simbiose entre homem e máquina
A simbiose entre homem e máquina
Imagem: MUBI/O2Play
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Há pelo menos dois tipos de arte. A que é feita para agradar e confortar, e a que procura incomodar e perturbar. David Cronenberg sempre filmou com a segunda intenção.

Crimes do Futuro, longa-metragem mais recente do diretor canadense após um hiato de oito anos, recupera questões que ele havia deixado em suspenso desde Existenz (1999). O tema do novo filme, em cartaz desde a quinta-feira 14, é, mais uma vez, o corpo como lugar de experimentação de tecnologias.

Em vez de remixar ideias abordadas, em profundidade, em Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983) e Crash: Estranhos Prazeres (1996), o cineasta as atualiza, sabendo que as tecnologias ultrapassaram o que os filmes anteriores prenunciaram.

Os filmes da primeira fase, conhecida como “Cronenbleargh”, pertenciam ao “body horror”, gênero em que os corpos sofrem mutações aterrorizantes. Depois, o diretor distanciou-se desse universo e ganhou respeito quando passou a filmar histórias mais reflexivas com imagens menos chocantes.

A mudança confirmou que ­Cronenberg é um artista pesquisador e provocador, cujo tema maior são as fusões, as simbioses ou as sínteses.

Estas não são anormais, pois provêm do plano biológico e sempre acontecem na forma de fertilizações, contaminações ou penetrações sexuais.

Mas também podem ocorrer, hipoteticamente, quando o humano se conecta com o que o expande e o distorce. Máquinas, próteses e tecnologias fazem parte desse universo, assim como as drogas, as desordens psíquicas e as doenças.

Em Crimes do Futuro, a ideia ressurge em mais de uma situação. Temos a relação fusional entre Saul Tenser ­(Viggo Mortensen, genial), homem cujo organismo mutante gera novos órgãos, e ­Caprice (Léa Seidoux), cirurgiã convertida em artista que extrai os órgãos em performances aplaudidíssimas.

Temos também o corpo transumano de uma criança, cujo sistema digestivo já não é mais só orgânico, alimenta-se de plástico como se fosse a simbiose completa do humano com a máquina. E temos os personagens ainda humanos, que cultuam os que completaram a transição como sanguessugas dependentes de organismos evoluídos.

Por meio do fantástico, Cronenberg retoma a ideia radical de sua obra, a de que o biológico é apenas ponto de partida. Se consideramos natural a mente humana criar mundos, projetar obras e transformar a natureza, adaptando-a às suas necessidades, por que não supor que os corpos tenham potências reprimidas?

Crimes do Futuro pode parecer alucinação de artista doidão. Mas basta lembrar que hoje quase ninguém vive sem celular ou internet para demonstrar que a arte de Cronenberg não tem nada de irreal. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A simbiose entre homem e máquina “

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