

Opinião
O soldado da democracia
Homenagem ao general Lott, que entrou para a história por preservar a ordem constitucional


Dia 11 de novembro de 1955. O então menino, aquele que rabisca essas mal traçadas linhas – assim se dizia nas antigas – voltava da escola para filar um prato de comida na casa da avó, a quatrocentona, mas generosa e trabalhadora dona Hermelinda.
Na linguagem militar, era hora do rancho e lá estavam na casa da Rua Penaforte Mendes os dois Luiz Gonzaga, o magistrado Belluzzo e o Mello, tio do menino, gerente da Editora José Olympio em São Paulo.
Apresentados os personagens, arrisco uma sintética narrativa do diálogo entre os dois Gonzagas. Eles comentavam, entusiasmados, as movimentações do ministro da Guerra, general Henrique Batista Duffles de Teixeira Lott. As notícias corriam o País na radiofonia do Repórter Esso, o Primeiro a Dar as Últimas, Testemunha Ocular da História.
O futuro Marechal Lott, diziam meu pai e meu tio, moveu-se de forma enérgica e eficiente para impedir os arroubos golpistas da tigrada, políticos civis e oficiais das três armas, sempre entregues a delírios antipopulares e antidemocráticos. Desde o suicídio de Getúlio, apontavam os dois Gonzagas getulistas, esses inimigos do povo juntaram forças para impedir a continuidade do processo democrático e interromper o projeto nacional-desenvolvimentista. Pretextavam, como sempre, uma conspiração comunista infiltrada na sociedade e nas instituições. Assim falavam seus porta-vozes instalados nos jornalões e particularmente na Tribuna da Imprensa comandada pelo golpista incansável Carlos Lacerda.
Para não cometer leviandades armazenadas na memória de adolescente, recorri à obra-prima de Wagner William,
O GENERAL ESTAVA DETERMINADO A EVITAR DERRAMAMENTO DE SANGUE E REDUZIR O SOFRIMENTO DO POVO
O Soldado Absoluto, uma biografia imperdível do militar impecável e intransigente em sua devoção aos princípios que devem reger a vida militar (digo “imperdível” porque estou farto de ouvir essa palavra escrita nos cards de convocação para lives medíocres e superficiais que infestam as redes sociais).
Lacerda comandou uma campanha implacável contra o governo de Getúlio Vargas, escancarando todas as rejeições que habitavam sua alma conservadora, sempre empenhada em negar os projetos de desenvolvimento nacional. Essa campanha sistemática custou a Lacerda a insensatez do chefe da segurança de Getúlio, Gregório Fortunato, executor do atentado da Rua Toneleros, no Rio. Os projéteis roçaram as pernas de Lacerda e vitimaram o major Rubem Vaz. O triste episódio desatou um turbilhão de revoltas nas hostes militares e culminou com a República do Galeão, conspirada por oficiais da Aeronáutica, que mais tarde viriam a praticar as tentativas de golpe de Jacareacanga e Aragarças. Isso para não falar no suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954. Wagner William registra o que aconteceu no último dia de 1954. Os ministros militares e os chefes de Estado-Maior das Forças Armadas enviaram uma carta ao presidente, na qual se mostravam habituados a ser chamados em momentos de crise e apelavam aos partidos políticos para que encontrassem uma solução de consenso, além de afirmarem que não se candidatariam à Presidência: “Profundamente preocupados com os perigos que certamente advirão, em meio à grave crise econômica e social que atravessa o País, de uma campanha eleitoral violenta, os chefes militares das três Forças Armadas, mais diretamente responsáveis, perante Vossa Excelência, pela preservação da ordem e tranquilidade públicas, e levados pelo fato de que em todos os momentos de crise nacional a elas, sistematicamente, se têm dirigido os anseios populares para as soluções capitais, sentem-se no dever moral de encarecer junto a Vossa Excelência a necessidade de um apelo do Governo da República a todas as forças políticas nacionais, em favor de um movimento altruístico de recomposição patriótica, que permita a solução do problema da sucessão presidencial em nível de compreensão e espírito de colaboração interpartidária, sem o acirramento dos ódios e dissensões que vêm de abalar seriamente a vida nacional. E, ao fazê-lo, querem outrossim declarar que não os move qualquer desejo de ver aceita a candidatura de um militar, apressando-se aqueles mais apontados, em comentários da imprensa, como possíveis candidatos e que também assinam este documento, a afirmar perante Vossa Excelência que não se consideram como tais, nem encararão como conveniente o lançamento de suas candidaturas nas circunstâncias atuais”.
Assinavam o “Documento dos Militares” o marechal Mascarenhas de Moraes, os generais Lott, Távora e Canrobert Pereira da Costa, os almirantes Valle e Saladino Coelho, e os brigadeiros Eduardo Gomes e Gervásio Duncán de Lima.
Lacerda comandou uma campanha implacável contra o governo de Getúlio Vargas – Imagem: Farabola/Leemage/AFP
Muitos dos signatários, como Eduardo Gomes e o almirante Valle, se embrenharam na senda golpista preconizada por Carlos Lacerda, o porta-voz dos democratas que odeiam a democracia. Lott justificou sua assinatura de maneira seca: “Subscrevi-o porque sou contra a intervenção dos militares na política”.
A temporada de 1955, o conturbado ano das eleições presidenciais, registrou uma sucessão de episódios que revelavam a indisposição da UDN e de facções das Forças Armadas com uma possível vitória de Juscelino na disputa com o general Juarez Távora. Na rota dos destemperos estava a demissão do ministro da Guerra legalista e respeitador da disciplina e da hierarquia, princípios que deveriam governar os quartéis
Os choques e entreveros culminaram com a investida de novembro de 1955, quando Lacerda e o presidente em exercício, Carlos Luz, embarcaram no navio Tamandaré para chegar em Santos e, depois, em São Paulo, onde a turma de Jânio Quadros escavava trincheiras na Avenida São João.
William Wagner conta que, em entrevista exclusiva concedida por Lott ao jornalista Otto Lara Resende, publicada na revista Manchete de 19 de novembro de 1955, o soldado absoluto revelou, através de uma reportagem histórica, todo o seu drama de consciência durante aqueles momentos:
“Eu estava convencido de que deveria manter-me nos limites da legalidade e nenhum gesto de rebeldia devia partir de mim, por minha iniciativa. Certo de que assim agia bem, não tomei qualquer providência de ordem militar. Jantei e deitei-me, para dormir. Não dormi. Passei cerca de quatro horas insone, com o coração aos pulos. Cheguei até a recear que algo fosse me acontecer, apesar da rijeza dos meus 60 anos… Foi aí que vivi o dilema a que meu amigo Canrobert se referiu no seu discutido discurso. Conformar-me, aceitar minha demissão como um fato consumado, a que nada deveria opor, ou rebelar-me? A paixão pela legalidade me impedia qualquer gesto que importasse em quebra das normas constitucionais. Mas, por outro lado, meditava: minha demissão viria permitir a substituição de camaradas experientes e menos apaixonados por elementos exaltados, partidários da solução ilegal.
A META DA ALMA CONSERVADORA É EMPENHAR-SE EM NEGAR OS PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL
“A legalidade estava, assim, ferida de morte, e sem possibilidade de uma defesa imediata e eficiente. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica viriam a cair nas mãos dos comandantes favoráveis ao golpe nas instituições e, acima deles, um presidente da República interino alimentava a mesma intenção de suspender as garantias democráticas, negando o pronunciamento livre das urnas. Viria a dissolução do Congresso, a derrubada da Justiça. Os cargos e os postos públicos seriam distribuídos entre inaptos, a boa intenção de alguns, sinceramente convencidos da necessidade da intervenção militar, não supriria as inconveniências de uma, tal o estado de coisas.
“Sem nenhuma dúvida, marcharíamos a passos rápidos para a guerra civil e para a anarquia. Tudo isso seria consequência de minha conformação naquele momento. Mas havia alternativa: sair temporariamente do quadro legal para chefiar um movimento que afastasse o presidente, moralmente incapaz de exercer as altas funções, assim como outras autoridades militares favoráveis à solução ilegal. Havia, é claro, a possibilidade de uma luta com derramamento de sangue, na qual brasileiros com armas e balas brasileiras iriam eventualmente fazer uma guerra civil.
“Sobretudo, era preciso evitar o derramamento de sangue – e meu afastamento da Pasta da Guerra não garantiria que o sangue dos brasileiros não ia ser derramado, antes pelo contrário. Essa alternativa de uma rápida intervenção minha ainda apresentava a vantagem de, bem-sucedida, vir a preservar as instituições democráticas, reduzir o sofrimento do povo, cumprir o papel constitucional das Forças Armadas em favor da lei e da ordem. Cerca de uma hora da madrugada, cheguei à conclusão de que devia agir imediatamente. Não tinha tempo a perder”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O soldado da democracia”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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