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Topete de molho

A investigação sobre a invasão do Capitólio alcança os calcanhares do ex-presidente Donald Trump

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Contra a parede. O comitê de investigação da Câmara dos Deputados, formado por sete democratas e dois republicanos, acumula evidências da participação de Trump - Imagem: Comitê de Investigação/Congresso dos EUA e Casa Branca/Arquivo
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Os ataques terroristas de 11 de Setembro são considerados uma das maiores tragédias da história dos Estados Unidos, mas foi há pouco mais de um ano, em 6 de janeiro, que um motim no Capitólio, fomentado por campanhas de desinformação e teorias da conspiração impulsionadas pela direita radical, despontou como a mais grave tentativa de subverter a ordem democrática norte–americana. Fazer o paralelo entre esses dois episódios trágicos é inevitável porque, embora cada um tenha sua respectiva magnitude, ambos deixam claro que os EUA têm feridas abertas e batalhas profundas a combater.

Em um país onde a polarização tem dado cada vez mais o tom das conversas, há urgência para desatar nós que de alguma forma são fortalecidos pelo universo das fake news e encorajam uma possível nova onda de ataques semelhantes àquele de 6 de janeiro. Não se trata necessariamente de invasões ou quebradeira de prédios públicos, mas especialistas asseguram que, pelo andar da carruagem, a questão não é mais “se”, mas “como” e “quando” isso deve acontecer.

Professor emérito na Universidade ­Webster, no Missouri, Daniel C. ­Hellinger acredita que haverá um aumento dos níveis de violência política, “mas não um ataque direto ao Capitólio, à Casa Branca ou a outros edifícios importantes em ­Washington. O mais provável é que possamos ver confrontos mais violentos a envolver gangues paramilitares, como os Proud Boys e Oath Keepers, e manifestantes esquerdistas”, explica. “Não podemos descartar a violência em confrontos nos níveis estadual e local entre diferentes lados sobre direitos ao aborto ou violência política. Temo que possamos ver mais violência nas campanhas eleitorais, como ataques a cargos ou comícios de candidatos. Os níveis de desconfiança estão muito altos, e isso pode resultar em protestos violentos contra resultados contestados.”

Mais de 800 suspeitos foram presos ou acusados pelos atos “terroristas” de 6 de janeiro do ano passado

Não por menos, logo após o 6 de janeiro, o Departamento de Justiça norte-americano deu início a uma das maiores investigações da história do país – uma tentativa de também deixar claro que crimes como esse não ficarão impunes. Até o fim de junho ao menos 874 suspeitos haviam sido presos ou acusados pelo governo federal. Desse total, 314 confessaram participação no motim. O FBI continua à caça de mais envolvidos na insurreição e a expectativa é de que o número aumente à medida que mais vídeos e fotos sejam analisados.

Em paralelo às investigações do Departamento de Justiça e a exemplo do 11 de Setembro, foi criada, em junho do ano passado, uma comissão bipartidária que investiga o que sua resolução organizadora chama de “fatos, circunstâncias e causas relacionados ao ataque terrorista doméstico de 6 de janeiro de 2021”. Desde que foi criado, o chamado Comitê Seleto da Câmara, formado por sete democratas e dois republicanos, emitiu intimações, entrevistou centenas de cidadãos e catalogou milhares de documentos. Nas últimas semanas, audiências públicas realizadas por esse comitê, e em grande parte transmitidas ao vivo pelas principais redes de tevê, passaram a desvendar os bastidores do que de fato aconteceu naquele dia e qual a responsabilidade do ex-presidente Donald Trump e seus aliados no desenrolar de toda a trama. Após mais de um ano de investigação, ficou claro para a comissão que o 6 de janeiro começou muito antes daquela tarde de quarta-feira.

Longe do fim. O Departamento de Justiça ainda caça envolvidos na invasão. Até agora, 314 suspeitos confessaram participação no motim – Imagem: Brent Stirton/Getty Images/AFP

Após o fechamento das urnas das eleições presidenciais no dia 3 de novembro de 2020, foram três dias de apurações, contagem e recontagem até que o resultado confirmasse a vitória de Joe ­Biden, eleito presidente dos Estados Unidos com 51,3% dos votos contra 46,8% do republicano. A partir daí Trump entrou com recursos nas mais diferentes instâncias e em mais de 60 casos os juízes determinaram que as alegações não tinham mérito. O ex-presidente chegou a ameaçar o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, a “encontrar” votos suficientes para reverter o fiasco na região. A cada derrota, um tuíte explosivo incitava seus apoiadores a “parar a fraude eleitoral”, a “salvar a América”, a “impedir o roubo” e a “lutar como o inferno”. Em 19 de dezembro, Trump tuitou que haveria “um grande protesto em DC em 6 de janeiro” e chamou de o “dia do acerto de contas”, “esteja lá, será selvagem!”

Não há como negar que o ataque ao Capitólio foi tramado e escancarado diante dos olhos de todos os eleitores por semanas. Quando o 6 de janeiro chegou, milhares de trumpistas de várias partes do país desembarcaram em Washington e bastou um último discurso incendiário para fazer com que grande parte da multidão, que carregava não apenas bandeiras, mas armas, facas, lanças, forcas, munições e mastros, marchasse violentamente para a sede do Poder Legislativo.

Em um depoimento surpreendente em 28 de junho, Cassidy Hutchinson, ex-assessora do último chefe de gabinete de Trump, Mark Meadows, afirmou que o ex-presidente “estava furioso por não deixarmos as pessoas passarem pelas revistas com armas” e exigiu que o Serviço Secreto derrubasse os postos de controle e deixasse que seus apoiadores entrassem armados. Hutchinson revelou que outro funcionário da Casa Branca, Anthony Ornato, teria alertado Trump e seu círculo íntimo, como o advogado J­ohn Eastman (que dias atrás teve seu telefone apreendido por agentes federais), sobre muitos de seus seguidores estarem com armas como rifles AR-15, mas, em tom despreocupado, o ex-presidente teria dito que não se importava: “Eles não estão aqui para me machucar”. Num ataque de fúria, o ex-presidente ainda teria agredido o então chefe do Serviço ­Secreto, ­Robert Engel, após ser impedido de ir ao Capitólio. Segundo Hutchinson, ­Engel confidenciou a ela que Trump tentou agarrar o volante e mudar a direção do veículo, mas que o chefe da segurança teria segurado o braço do então presidente e pedido para que ele não fizesse aquilo. Em resposta, Trump teria agarrado a clavícula de Engel e dito “eu sou a p**** do presidente, me leve até o Capitólio agora”.

O depoimento de Cassidy Hutchinson, ex-assessora na Casa Branca, complica a defesa de Trump

Outras testemunhas, entre elas o assistente pessoal do ex-presidente Nick Luna e o ex-assessor da Casa Branca Max Miller, confirmaram que Trump havia manifestado interesse em marchar ou dirigir até o Capitólio. Quando a situação teria saído do controle, Hutchinson teria procurado Meadows e alertado que a multidão havia se tornado violenta, mas que a resposta foi uma “falta de reação”. “Lembro-me dele dizendo: ‘Tudo bem’… algo como ‘quanto tempo ainda resta ao presidente em seu discurso?’”

Em uma declaração em sua plataforma de mídia social, Trump afirmou que o testemunho de Hutchinson era “falso”, “doente” e “fraudulento”. Em um comunicado oficial, o Serviço Secreto disse que os agentes estavam preparados para prestar depoimento juramentado ao painel. Meadows não se pronunciou sobre as afirmações de sua ex-assessora, mas, segundo a deputada republicana Liz ­Cheney e vice-presidente do comitê, Meadows teria tentado intimidar Hutchinson horas antes do depoimento. Em entrevista à Fox News, Eastman limitou-se a dizer que o mandado de apreensão do telefone nunca especificou qual violação da lei os promotores estavam investigando.

Para Hellinger, as audiências de 6 de janeiro prejudicaram seriamente as chances de Trump retornar à Presidência. “Embora ele mantenha um grande eleitorado com o Partido Republicano, as audiências parecem ter erodido seu apoio entre os eleitores mais moderados. Outros republicanos com ambições para a Presidência, especialmente o governador da Flórida, Ron DeSantis, sem dúvida gostaram de assistir ao ‘show’ apresentado pelo Comitê.” Até mesmo o crítico conservador David French, que semanas atrás estava cético sobre as chances de a comissão produzir provas suficientes, escreveu no site The Dispatch que “o testemunho juramentado de Hutchinson fecha uma lacuna no caso criminal contra Trump”.

Cúmplices. Mark Meadows e John Eastman não fizeram nada para deter a tentativa de golpe de Estado – Imagem: Redes sociais e Gage Skidmore

Um relatório final com recomendações do Comitê, que incluem uma possível legislação para tentar garantir que eventos como o de 6 de janeiro não se repitam, será entregue ao Departamento de Justiça semanas antes do dia da eleição, em novembro. Como a comissão não tem autoridade para processar acusações criminais, a decisão caberá ao procurador-geral, Merrick Garland, e, em última análise, a Biden. “O presidente é muito cauteloso. Acho mais provável que Trump se encontre no Tribunal do estado de Nova York por acusações de fraude ou evasão fiscal”, avalia Hellinger.

Para a vice-presidente do comitê, embora apresentar acusações contra um ex-presidente seja sem precedentes e difícil para o país, não fazê-lo encobriria, no entanto, uma ameaça constitucional bem mais grave. “Eu realmente acredito que temos de tomar essas decisões, por mais difíceis que sejam, fora da política. Nós realmente temos de pensar sobre isso na perspectiva de: o que isso significa para o país?”, disse Cheney em entrevista à ABC News. As cartas ainda estão na mesa. Para quem acompanhou o mandato controverso de Donald Trump e o assistiu a se livrar de dois processos de i­mpeachment, não é difícil imaginar que ele escape mais uma vez.  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Topete de molho”

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