Economia

assine e leia

Sobre o amor ao dinheiro em si

De Machado de Assis a Paulo Cunha e a Luiz Inácio

Sobre o amor ao dinheiro em si
Sobre o amor ao dinheiro em si
Alcance. Não basta garantir a renda, é preciso respeitar a dignidade dos cidadãos conferindo-lhes atividades inclusivas que os considerem como indivíduos - Imagem: Grupo Ultra, Marc Ferrez/Acervo IMS e Ricardo Stuckert
Apoie Siga-nos no

O nosso Lula disparou em uma entrevista à Rádio Metrópole (Bahia) na sexta-feira, 1º de julho: “Essas pessoas não podem ser ignorantes de querer só acumular riqueza. Ah… o fulano de tal é o mais rico do mundo, tem 50 milhões de dólares, outro tem 70 milhões. Pra quê? Você vai gastar no quê? Pra que você quer acumular tanto dinheiro, imbecil? (…) Distribua um pouco do seu salário. Distribua com alguns benefícios”.

Tempos atrás, a Folha de S.Paulo estampou longa entrevista com o ex-presidente Lula. Depois de marchas e contramarchas, a jornalista Mônica ­Bergamo pergunta: “O senhor fala ‘eles não me aceitam’. Quem são eles?” Lula responde: “Ah, não sei. São eles. Eu não vou ficar nominando.”

“Quem são eles?”

Em tempos idos, a pergunta suscitaria a velha perplexidade, “agora é que são elas”. O Novo Dicionário de Expressões Idiomáticas, editado em Portugal em 2006, registra o sentido da expressão: “Exclamação com que o orador reconhece estar perante uma séria dificuldade”. Confrontados com as ambiguidades da condição humana, os da antiga tinham coragem para manifestar dúvidas a respeito da própria sabedoria.

“Quem são eles?”

Depois de se reafirmar o “orgulho com seu governo, período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salário, em que geramos mais empregos etc.”, Lula assestou baterias contra “o bando de yuppies, jovens bem aquinhoados que vivem ganhando dinheiro através dos bônus, de não sei das quantas, para vender papel, sem vender um produto”.

Dos baixios de minhas insuficiências, vou arriscar uma aventura quase filosófica. “Eles” são uma construção dos processos de abstração real que comandam a vida dos homens e das mulheres nas sociedades contemporâneas. As corporeidades, identidades e individualidades estão aglutinadas em um bloco de interesses classistas, visões do mundo, modos de vida, preconceitos, ancestralidades meritocráticas e escravagistas. A embolada social-ideológica carrega os senhores do dinheiro e seus yuppies.

As engrenagens impessoais da abstração real e da homogeneização das individualidades são explicitadas diariamente nas páginas da imprensa corporativa e nas redes sociais. Os cordéis manipulam os movimentos dos manifestoches da Avenida Paulista, a ignorância e grosseria das redes sociais, os acarpetados escritórios ocupados por mesas de operação das instituições financeiras, as redações cada vez mais obedientes e menos inquietas.

Para essa turma, a eleição de Lula foi a realização do inaceitável. Pouco importa se ganharam muita grana e abasteceram generosamente seus cofres com inúteis e danosas apostas nos mercados de derivativos de câmbio e juros, sempre e cada vez mais respondendo aos movimentos dos mercados financeiros globalizados.

Cordéis manipulam a grosseria das redes sociais e as redações cada vez mais obedientes

Machado de Assis escreveu um conto chamado Anedota Pecuniária. Ainda nos tempos da escravidão, um ano antes da Lei do Ventre Livre, os traficantes de escravos engordavam seus cabedais e se entregavam aos negócios do dinheiro. Machado desvela as angústias de Falcão. O personagem, imagino, ademais de traficar escravos, resolveu negociar as próprias sobrinhas que herdou da irmã falecida:

“Chama-se Falcão o meu homem. Naquele dia – 14 de abril de 1870 –, quem lhe entrasse em casa, às 10 horas da noite, vê-lo-ia passear na sala, em mangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando, suspirando, evidentemente aflito. Às vezes, sentava-se; outras, encostava-se à janela, olhando para a praia, que era a da Gamboa. Mas, em qualquer lugar ou atitude, demorava-se pouco tempo.

— Fiz mal – dizia ele, muito mal. Tão minha amiga que ela era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal… Ao menos, que seja feliz!

Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, 10 contos de réis, voltar-me-ão as costas com desprezo e indignação. Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dous beiços, mestres de cálculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma cousa, para adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo! Ninguém lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro para esbanjá-lo, dizia ele. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes à burra, que está na alcova de dormir, com o único fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de títulos. Outras vezes, por um requinte de erotismo pecuniário, contempla-os só de memória. Neste particular, tudo o que eu pudesse dizer ficaria abaixo de uma palavra dele mesmo, em 1857. Era assim que ele amava o dinheiro, até à contemplação desinteressada”.

Paulo Cunha, meu amigo, fundador do Iedi, sustentou ao longo de sua vida um olhar interessado e agudo para as riquezas do Brasil. Outro amigo e companheiro de muitas jornadas, o diretor-executivo do Iedi, Julio Gomes de Almeida, afirmou ao Valor que Paulo Cunha foi um inovador na indústria brasileira e pensava o ­País como poucos, preocupado desde sempre com os efeitos da nossa desigualdade social. “Inovador para vários setores. Foi muito importante para a indústria química e petroquímica no Brasil e um símbolo de novos negócios. Como empresário, um gigante”… “Ele era muito importante no planejamento, nas ideias e na execução dos trabalhos do Iedi. Era uma pessoa que olhava o Brasil a todo momento”… “Esteve entre os primeiros a reclamar do retrocesso industrial brasileiro.”

Paulo Cunha pertencia a uma geração de empresários brasileiros comprometidos com suas empresas, seu País e com o progresso econômico-social do seu povo. Nessa geração figuravam Antônio Ermírio de Moraes, Claudio Bardella, Paulo Villares, Abraham Kasinski, José ­Mindlin. Muitos deles tiveram o desassombro de assinar, em 1978, o ­Documento dos Oito, um grito empresarial em defesa do País que ainda avançava nas rotas da industrialização.

A regressão dos últimos anos não ocorreu apenas na derrocada da indústria. O declínio cultural das classes empreendedoras acompanhou a desmontagem do parque industrial brasileiro e a letargia em buscar as formas contemporâneas de ativação da economia industrial.

Essas formas devem incorporar as experiências que levaram ao avanço da indústria 4.0, aos programas de garantia de renda, ao desenvolvimento das atividades voltadas à educação e à saúde. Não basta garantir a renda, é preciso respeitar a dignidade dos cidadãos, conferindo-lhes atividades inclusivas que os respeitem como indivíduos socializados, ou seja, pessoas que realizam seus projetos de vida enquanto coágulos sociais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sobre o amor ao dinheiro em si”

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo