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O rei e a rainha da ficção popular

Marian Keyes e Richard Osman, amigos, fãs um do outro e campeões de vendas, falam sobre a delícia do sucesso e o drama do vício

O rei e a rainha da ficção popular
O rei e a rainha da ficção popular
Mainstream. Ele, um conhecido apresentador de TV, vendeu os direitos de seu romance policial para Spielberg. Ela, apesar do tom humorístico, fala de temas como depressão e luto, e seus livros venderam 35 milhões de exemplares - Imagem: Dean Chalkley e Penguin Books
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“Então, como é ser um fenômeno editorial?”, pergunta a escritora irlandesa Marian Keyes ao produtor e apresentador de tevê britânico, e agora romancista, Richard Osman, entre Diet Cokes e croissants de chocolate. “Um recordista de recordistas?”

Falar em “fenômeno” não é exagero. O primeiro romance de Osman, O Clube do Crime das Quintas-Feiras, vendeu 45 mil exemplares em três dias, em 2020, e seu sucessor, O Homem Que Morreu Duas Vezes, foi um dos mais vendidos da história. Com esses números, ele chegou ao topo, com Dan Brown e J.K. Rowling. E esse é o tipo de coisa que só acontece a cada 15 ou 20 anos.

“Gosto muito de números”, responde o rei das tardes de banalidades na tevê. “Mas, no fundo, estou orgulhoso dos livros. Então os números para mim apenas disseram: ‘Bem, isto é emocionante’. Deve ser o mesmo para você. Você sempre vendeu muitos livros, mas passou por um momento em que todo mundo dizia: ‘Sabe de uma coisa? Esta é realmente uma literatura brilhante’. De repente você foi elevada e se tornou uma supermarca.”

Entrevistar Osman e Marian é como ser apanhada num abraço entre dois tesouros nacionais, embora um pouco tortos, com o 1,97 metro de Osman ao lado da diminuta Marian. Aos 51 e 58 anos, respectivamente, eles são tão adoráveis – a palavra favorita de ambos – quanto a mãe de todo mundo diz.

Autora de 15 romances, Marian foi, por muitos anos, a rainha da chick-lit, a literatura para garotas – termo aposentado, com as capas cor-de-rosa. Seu livro mais recente é Again, Rachel (Outra Vez, Rachel, inédito em português), uma sequência do best seller Férias (1997).

Com vários êxitos como apresentador de tevê e agora dois livros de sucesso, Osman foi apelidado de “o mestre do mainstream”. Mesmo que haja algum esnobismo nesses apelidos, eles não dão importância. “Você tem de escrever livros que você mesmo leria”, diz Osman. “Queria escrever um livro inteligente que fosse muito acessível. Meu instinto natural foi escrever algo que as pessoas lerão com o coração.”

O Clube do Crime é um policial ambientado numa luxuosa vila de aposentados. Estrelado por quatro detetives amadores, é um pouco como o Big Brother. “Esses personagens que podem não ter nada em comum são colocados juntos até serem eliminados pelo ceifador”. Os direitos para o cinema foram adquiridos por Steven Spielberg.

“Você tem de escrever livros que você mesmo leria. Queria escrever um livro inteligente que fosse muito acessível”, diz Osman

Não há coragem ou sangue em ­Marian ou Osman. Num encontro improvável de comédia romântica com crime cômico, cada um criou um universo ficcional de bem-estar. “Acho o mundo incrivelmente duro, especialmente neste momento”, diz Marian. “E nos livros (de Osman) me sinto feliz e segura.”

Osman é fã de Agatha Christie, cujo espírito domina O Clube do Crime, e ­Dorothy L. Sayers, bem como dos escritores policiais contemporâneos Val ­McDermid e Mark Billingham. Mas foi para Marian, com seu tom coloquial e seu suave toque cômico, que ele olhou em busca de sua voz. “Quando você escreve seu primeiro livro, você pensa: ‘Que merda é essa?’”, diz ele, já que seu romance não se encaixa no formato convencional do policial. “Eu pensei: ‘Espere, é isso que Marian faz, talvez esteja certo’.”

Desde o primeiro romance, Melancia (1995), a ficção de Marian, a despeito do estilo tagarela, lida com questões difíceis, incluindo vício, divórcio, depressão, distúrbios alimentares e luto. Apesar da longa carreira, seu trabalho não recebeu a mesma atenção da crítica que o de escritores cômicos homens como Nick Hornby ou David Nicholls.

“Talvez, se eu fosse ‘Martin’ Keyes, meus livros fossem vistos de forma diferente”, disse-me numa entrevista anterior. Ao longo dos anos, ela aprimorou sua resposta para a pergunta inevitável sobre se isso a incomoda: não mais, afinal, ela já vendeu mais de 35 milhões de livros, mas há uma tese econômica maior a ser defendida.

“Poder e dinheiro são adoráveis. Os homens têm muito mais do que as mulheres, e vão protegê-los”, diz. “Você não pode sair dizendo às mulheres que elas são boas nas coisas, porque elas vão querer ganhar mais, vão querer que as ajudem em sua parte do trabalho emocional em casa.”

O esnobismo literário sempre conteve mais que uma pitada de misoginia. “É muito eficaz dizer besteiras às mulheres que gostam dos livros que estão lendo”, continua. “Porque é incrivelmente humilhante ouvir: ‘Meu Deus, você não está lendo essa merda, está? E você foi à universidade?’”

Osman sugere que isso finalmente parece estar mudando. Adultos (2020), o romance mais ambicioso de Marian, recebeu críticas positivas. “Nunca mais vamos esperar 50 anos para reavaliar escritoras engraçadas”, diz Osman. “Veja ­John Grisham”, prossegue. “Talvez ele não tenha o estilo de prosa de Julian Barnes, mas ninguém escreve um livro de John Grisham tão bem quanto John Grisham. Você tem de ser a melhor pessoa que escreve o tipo de livro que você escreve.”

O romance contemporâneo em que ele vê uma ótima narrativa e uma prosa elegante é Golden Hill, de Francis Spufford – “o melhor livro do século”. Classe social, ambos concordam, é tudo, especialmente quando se trata de comédia. Cada um deles descreve suas origens como de classe média baixa. Ter “uma noção bastante boa de onde você veio e aonde chegou” é útil para um escritor, diz Osman.

Ambos têm mais do que as vendas colossais em comum. Marian foi alcoólatra e Osman sofre de vício em comida desde os 9 anos, mais ou menos a mesma idade em que Marian se viciou em analgésicos, açúcar e livros. “Mas o álcool foi o grande problema”, diz ela.

Quando tinha 30 anos, antes de começar a escrever, Marian foi mandada para uma clínica de reabilitação, depois de ter tentado se matar. “Você sempre tem de ir mais longe”, diz Osman, impassível. O despertar de Osman foi menos drástico: procurou um terapeuta.

Parte da afinidade de Marian com sua personagem Rachel é que ambas são viciadas. A personagem de Adultos luta contra a bulimia. E o detetive de cidade pequena de Osman, está sempre a um bolinho de chocolate antes de começar uma dieta. “Se você é algum tipo de viciado, você não julga”, diz Osman. E foram essa empatia e esse perdão que conquistaram tantos leitores. “Todos os viciados que conheci, e conheci muitos, tiveram algo em si muito desconfortável de se conviver. Isso vem de todos os tipos de traumas”, diz ela.

Osman escreveu O Clube do Crime das Quintas-Feiras em 18 meses, quando teve uma brecha em sua agenda de filmagens. Ele escreve durante duas horas no máximo, visando mil palavras por dia. “É como ir à academia. Se você for uma hora todos os dias durante um ano, entrará em forma. Se escrever mil palavras por dia durante 90 dias, terá um livro de 90 mil palavras.”

Marian escreveu Outra Vez, Rachel durante o confinamento social. Voltar aos Walsh, personagens tão antigos, lhe deu “uma sensação de segurança”, e agora pretende seguir neles. Osman está encerrando o terceiro livro e tem o quarto na mira. Depois de quatro livros em quatro anos, ele planeja fazer uma pausa para escrever “um romance do tipo thriller de aeroporto”. E gosta de imaginar um futuro em que estará no livro número 25.

Marian tem uma última pergunta: “É verdade que você vai se casar?” Osman conheceu sua parceira, a atriz Ingrid Oliver, de Doctor Who, durante o lockdown. “Sim. Emocionante, não é?”

É como Marian diz sobre sua predileção por finais felizes: “Sempre gosto de terminar nas partes boas”.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O rei e a rainha da ficção popular “

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