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O direito sobre o próprio corpo

O filme O Acontecimento, baseado nas memórias de Annie Erneaux, reconstitui um aborto clandestino realizado na França de 1960

O direito sobre o próprio corpo
O direito sobre o próprio corpo
O longa-metragem ganhou o Leão de Ouro em Veneza - Imagem: Zeta Filmes/Wild Brunch
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Em setembro de 2021, ao receber o Leão de Ouro no Festival de Veneza por O Acontecimento, Audrey Diwan, diretora francesa de origem libanesa, disse, no palco: “Fiz esse filme com raiva e desejo. Fiz esse filme com meu ventre, minhas entranhas, meu coração e minha cabeça”.

O longa-metragem, que estreou nos cinemas brasileiros na quinta-feira 7, baseia-se no pequeno livro também chamado O Acontecimento (Fósforo, 80 págs., 54,90 reais), no qual a escritora francesa Annie Ernaux reconstitui o aborto clandestino que realizara em 1964, quando era uma jovem estudante de letras em Paris.

“Com este relato, foi o tempo que se pôs em movimento e que me conduz apesar de mim”, escreve, no breve texto memorialístico publicado no ano 2000 na França e lançado este ano por aqui. “Sei agora que estou tão decidida a ir até o fim, aconteça o que acontecer, como estava quando, aos 23 anos, rasguei o atestado de gravidez.”

Se a cineasta Audrey Diwan decidiu, 20 anos após a publicação do relato, transformá-lo em filme é porque, segundo disse em entrevistas, “o que acontecia na França naquele momento ainda acontece em muitos países”.

“Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres”

Que o digamos nós, no Brasil, onde a discussão sobre a legalização do aborto é, neste momento, atropelada por algo que a antecede em meio século: o direito estabelecido de se interromper uma gravidez fruto de violência ou que coloque em risco a vida da mãe.

O que o filme O Acontecimento mostra é a busca obstinada da jovem Anne, vivida de forma brilhante pela atriz ­Anamaria Vartolomei, por uma forma de não dar seguimento à gravidez que, a despeito de ter sido fruto de um encontro romântico, era indesejada. Os véus que recobriam a sexualidade feminina e a lei implacável tornam pedregoso seu caminho.

Até 1975, ano em que o aborto foi legalizado na França, não apenas a mulher, mas qualquer pessoa que a ajudasse a abortar – um médico, uma amiga, uma parteira – poderia ir para a cadeia.

A partir do momento em que seu ventre deixou de estar vazio, Anne passou a procurar alguém disposto a ajudá-la a não ter sua juventude e seus desejos intelectuais ceifados. “Estou grávida. E eu quero continuar meus estudos. Isso é essencial para mim”, diz, para um dos médicos que a atendem. “Eu quero um filho um dia, mas não em troca de uma vida.” De sua própria vida.

Descendente de uma família simples, que tirava o sustento de um bar em uma pequena cidade, Annie, no livro, conta que era a primeira de seu núcleo familiar a escapar da fábrica e do balcão. “Mas nem o vestibular nem a graduação em letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema”, constataria, três décadas mais tarde.

Em 1999, à porta dos 60 anos, a autora francesa quebrou o silêncio sobre o aborto feito na juventude – Imagem: Ulf Andersen/AFP

Tanto a gravidez indesejada quanto a (im)possibilidade de abortar sempre foram, sabe-se bem, marcadores de classe. No ainda essencial documentário brasileiro O Aborto dos Outros (2008), a diretora Carla Gallo mostra bem esse recorte social presente na tragédia dos abortos clandestinos ou da culpabilização das mulheres que desejam pôr fim à gestação.

Outro filme-símbolo da violência decorrente da proibição do aborto é ­Quatro Semanas, Três Meses e ­Duas ­Semanas (2007), de Cristian Mungiu, que se passa durante a ditadura de Nicolae ­Ceausescu, na Romênia. Mas, enquanto o filme de Mungiu é construído quase como um thriller, o trabalho de Audrey é contemplativo e íntimo. Com a câmera quase sempre no ombro, ela segue de perto a protagonista, aproximando-nos de seu corpo em transformação.

Se a força do livro é a assunção da escrita como meio de elaboração do que não se pode nomear, a força principal do filme é a forma pela qual a narrativa, minimalista e rigorosa, lida com o tempo – que, após a descoberta da gravidez, passou a ser contado em semanas e tornou-se espesso.

A desolação e a impotência de Anne refletem-se em silêncios que contrastam com a ebulição do mundo estudantil que ela habita. A existência de Anne, a personagem, só foi possível graças ao silêncio que Annie, à porta dos 60 anos, teve coragem de quebrar.

“É justamente porque nenhuma interdição pesa mais sobre o aborto que posso (…) enfrentar, na sua realidade, esse acontecimento inesquecível”, pontua ela, no livro, lembrando o quão paradoxal é o fato de uma lei justa, criada a partir da luta feminista, ser sucedida pelo silêncio das “antigas vítimas”.

Por isso ela se pôs a escrever: “Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando ao lado da dominação masculina do mundo”.

Graças a O Acontecimento, filme e livro, sua experiência radical de vida e morte constitui, hoje, uma memória coletiva. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O direito sobre o próprio corpo”

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