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Um reencontro com Gramsci

Publicada no Brasil a edição comemorativa dos Cadernos do Cárcere, obra extraordinária do filósofo italiano

Um reencontro com Gramsci
Um reencontro com Gramsci
A Casa Gramsci, em Ghilarza, é singela e ostenta nas paredes um trecho das memórias do pensador, em sua própria caligrafia. Os volumes agora reeditados foram traduzidos por Carlos Nelson Coutinho, reconhecido especialista na teoria gramsciana - Imagem: Ales&Ales e Ediz Spanu/Reda&Co
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A Civilização Brasileira acaba de publicar em três volumes os Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, na tradução de Carlos Nelson Coutinho, um dos dois especialistas brasileiros na obra do extraordinário pensador italiano, juntamente com Leandro Konder, ambos já falecidos. Confesso que de longe prefiro a edição italiana de 1979 dos Editori Riuniti. Ao ler esta edição, imediatamente pensei que o sardo, assim como Marx pôs de ponta-cabeça a filosofia de Hegel, operou a mesma inversão em relação a Benedetto Croce, o mestre burguês que, com o advento do fascismo, fechou-se em sua casa de Nápoles como se estivesse em prisão domiciliar e não mais saiu até a queda de Mussolini.

Pensamento similar parece ter sido alimentado por Coutinho, que também escreveu uma introdução dos Cadernos sobre o pensamento de Croce. Meu avô paterno nasceu em Ghilarza e lá vou eu, amiúde, visitar primos a me oferecer guarida, com direito a copos e mais copos do excelente vinho da ilha, desaconselhado, entretanto, na companhia das fantásticas alcachofras sardas, mastigáveis até mesmo cruas, as melhores do mundo. Aconselhável, pelo contrário, um copo d’água ou um pouco de vinho branco enfrentado com compunção.

Mal entrados em Ghilarza, encontramos a seta a indicar a Casa Gramsci, o qual nascera por perto, em Ales, mas, aos 4 meses, levado pelos pais, mudou-se para a cidade natal do meu avô. Tornou-se ali um adulto pequeno, frágil e corcunda, mas combativo ao extremo, inimigo do fascismo, com desempenho notável no Congresso de Livorno, de 1921, a marcar o nascimento do Partido Comunista Italiano, inicialmente uma dissidência do Partido Socialista.

O pensamento de Gramsci ditou o rumo dos movimentos socialistas surgidos em seguida

O presidente da nova agremiação foi Amedeo Bordiga, mas o jovem Antonio já funcionava como um orientador indispensável, e como tal, tempos depois, foi encarado como insuportável inimigo pelo ­Duce, que o prendeu por 11 anos, até a morte hospitalar do pensador, liberado para o derradeiro suspiro, em abril de 1937. Carregava até o fim as suas preciosas anotações, finalmente reunidas depois de sua morte, decisivas para a orientação do PCI.

Em Ghilarza, a Casa Gramsci é singela, de escassos cômodos, para ostentar em uma das paredes um trecho das memórias do filósofo em sua própria caligrafia. Ao entrar ali, os visitantes de chapéu tiram-no como se estivessem na igreja. E dele mantém-se, como se fosse palpável no ar, a lembrança gramsciana, sempre presente em todos os recantos da vila, praticamente unida a outra, Abbasanta, a formar um só conjunto de 8 mil habitantes.

O filósofo iniciou seus estudos em ­Cagliari, capital da ilha, mas logo foi para a terra firme, como dizem os sardos, ou seja, para a península, e ali ficou para sempre. Em Turim, formou-se pela universidade local e deixou belas páginas jornalísticas como crítico literário. Não houve limites para sua riquíssima versatilidade e lidou com ponderada erudição sobre teoria política, sociologia, antropologia, história e linguística. Sua influência foi global e seu pensamento ditou rumos para todos os movimentos socialistas surgidos em seguida.

A Sardenha tem outras ligações com o PCI. Nasceu aí também ­Enrico ­Berlinguer, que comandava o partido na eleição de 1974, para praticamente empatar com o Partido Democrata-Cristão.­

Resultado final: 36% dos votos para o PDC, a agremiação governista, e 34% para o PCI. Daí nasceu a ideia do chamado “Compromisso Histórico”, e ­Aldo ­Moro, então líder do PDC, temido pelos ­Estados Unidos, foi sequestrado pelas Brigadas Vermelhas, infiltradas pela CIA, que cuidaram de assassiná-lo depois de um longo cativeiro, diante da indiferença de ­Giulio Andreotti, aquele que se tornara primeiro-ministro, em 1978, ano da morte do ­líder democrata-cristão. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um reencontro com Gramsci”

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