Cultura
Longa jornada memória adentro
Em seu último romance, A.B. Yehoshua percorre as bifurcações do cérebro para falar sobre a vida à beira do fim e sobre os confrontos entre Israel e Palestina


A primeira cena descrita em O Túnel se passa no consultório de um neurologista. Ali, o protagonista, Tzivi Luria, e sua mulher, terão a confirmação da presença de uma pequena atrofia no lobo frontal do paciente, engenheiro rodoviário aposentado que, ao longo da vida, fez estradas e abriu túneis para a companhia estatal Caminhos de Israel.
À parte a certeza da degeneração, ainda sutil, tudo o mais, na consulta, é nebuloso – tanto para eles, personagens, quanto para nós, leitores. Uma única advertência é feita pelo médico: “É proibido fugir da vida”. O Túnel, recém-lançado no Brasil, é um livro sobre a vida que, ante a velhice e a demência, escapa por entre os dedos. E acabou por ser a obra derradeira de A.B. Yehoshua, morto aos 85 anos, no dia 14 de junho, em Tel Aviv.
Yehoshua é um dos grandes escritores israelenses a ter transposto para a literatura, de maneira profunda e autêntica, os dilemas do país. Desde seu primeiro romance, O Amante (1977), ele impressionou a crítica. Harold Bloom foi um dos que lhe fizeram elogios rasgados. O público também o abraçou, tornando algumas de suas obras, como Cinco Estações (1989), sucessos.
Sua capacidade de conjugar a sofisticação na linguagem com uma história envolvente está evidente em O Túnel. A partir da degeneração no cérebro de Luria, que, de repente, esquece os primeiros nomes e se confunde no trajeto para casa, Yehoshua nos fará caminhar por estradas, túneis e bifurcações – alguns concretos, outros afetivos e outros ainda imaginários.
O TÚNEL.A.B. YEHOSHUA. Tradução: Tova Sender (432 págs., 89,90 reais)
Ao ouvir do médico que, talvez, a alma possa deter a perda da memória e das capacidades mentais, Luria, sua esposa e seu filho se empenham para evitar o embotamento também da alma. E a chance aparece quando Assael Maimoni, um jovem engenheiro cujo pai trabalhara com Luria, topa contratá-lo como assistente-sem-salário.
Maimoni foi incumbido de construir uma estrada militar em uma região de sítios ancestrais e aldeias palestinas, mas precisa convencer o Exército a abrir um túnel para resolver o problema de refugiados que se estabeleceram em uma colina. Tão tortuosos e incompreensíveis quanto os caminhos percorridos pelo pensamento de Luria são os da burocracia estatal e dos conflitos entre israelenses e palestinos. Haverá de fato lucidez fora da escuridão do cérebro de Luria?
Escrito com uma graça desconcertante e com um afeto que transborda, O Túnel é uma despedida impactante e comovente. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Longa jornada memória adentro “
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