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Negócio da China

Oito meses após ser privatizada, a CEEE-Transmissão distribui 1,2 bilhão de reais em dividendos para acionistas

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Fúria antiestatal. Eduardo Leite entregou de mão beijada a bilionária reserva da empresa pública para investimentos - Imagem: Gustavo Mansur/GOVRS e Pedro Revillion/GOVRS
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O tucano Eduardo Leite tem o péssimo hábito de não cumprir promessas. Em 2018, na campanha pelo governo do Rio Grande do Sul, assegurou que não seria candidato à reeleição. Mudou de ideia e está de volta à ­disputa pelo Palácio Piratini. Em 2021, embalado pelo sonho da Presidência da República, renunciou ao próprio mandato para disputar as prévias do PSDB. Garantiu que respeitaria as regras do jogo e apoiaria o vencedor da eleição interna. Derrotado pelo ex-governador paulista João Doria Jr., voltou a trair a palavra empenhada e implodiu o ninho tucano.

Durante a sua gestão, Leite também se notabilizou por mudar de juízo ao sabor da conveniência. Prometeu respeitar uma cláusula da Constituição do Estado que obrigava o Executivo a promover um referendo em caso de privatização de empresas estatais. Não cumpriu. Articulou um conluio na Assembleia Legislativa para derrubar a medida e privatizou dois braços da Companhia ­Estadual de Energia Elétrica: a CEEE-Distribuição e a ­CEEE-Transmissão, comprada pela CPFL Energia. A primeira foi vendida a preço de banana para a Equatorial Energia, 100 mil reais, e a segunda reproduz o milagre da multiplicação dos peixes.

Arrematada por 2,67 bilhões de reais em outubro de 2021, CEEE-Transmissão passou a ser oficialmente administrada pela CPFL Energia, empresa controlada pelo grupo chinês State Grid. Para justificar o negócio, o então governador disse ser do interesse público entregar a operação para o setor privado, “mais ágil e com maior capacidade de fazer os investimentos necessários”. Passados apenas oito meses, a CPFL anunciou a distribuição de 1,2 bilhão de reais em dividendos da ex-estatal.

“A empresa era pública e acumulava lucros há anos, que só foram distribuídos após a privatização”, denuncia o ­deputado estadual Jeferson Fernandes, do PT. Não se trata de uma especulação do parlamentar oposicionista. Por e-mail, a assessoria de imprensa da CPFL confirmou a ­CartaCapital que esses dividendos foram acumulados desde 2016 pela­ ­CEEE-Transmissão e estavam previstos na “conta de reserva de dividendos não distribuídos”, parte integrante do balanço da companhia publicado antes da aquisição da estatal. A CPFL afiança, porém, que o bilionário lucro repartido não afeta o plano de investimentos da empresa.

“Trata-se de mais um escândalo no setor de energia do Rio Grande do Sul”, avalia Fernandes. Para o deputado, ao acumular lucro desde 2016, a antiga empresa pública onerou os consumidores gaúchos para constituir uma reserva que, em vez de ser revertida em investimentos, acabou apropriada, na forma de lucro, pela estatal chinesa. “Estamos pedindo providências dos órgãos de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Essa informação nunca tinha vindo a público.”

Gerson Carrion, ex-presidente do grupo CEEE e assessor técnico da Frente pela Preservação da Soberania Energética Nacional, ingressou no último dia 3 de junho com um novo recurso no Ministério Público Estadual gaúcho, onde entregou um dossiê com mais de mil páginas, requerendo que o órgão reveja sua decisão favorável ao arquivamento das denúncias de irregularidades no processo de privatização da CEEE-Transmissão. O documento reforça o pedido do deputado federal Pompeo de Mattos, do PDT, que em abril de 2021 já havia apresentado a mesma solicitação ao Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

A estatal acumulava lucros desde 2016. A reserva acabou apropriada pela CPFL, controlada pelo grupo chinês State Grid

Carrion sustenta que a privatização foi “danosa e nociva” ao Estado e trará graves consequências aos consumidores, como o “aumento abusivo da conta de energia em patamares insuportáveis, associado ao péssimo serviço prestado à maioria dos consumidores pelo grupo Equatorial”. O ex-executivo lembrou que em março mais de 200 mil consumidores da Equatorial foram vítimas de um blecaute que durou vários dias nas regiões sul e metropolitana de Porto Alegre, área de concessão da empresa. Solicitou ainda que o MP investigue a distribuição de dividendos pela CPFL no valor de 1,2 bilhão de reais. Esse montante, diz ele, equivale a aproximadamente 70% do preço mínimo definido para a privatização da ­CEEE-Transmissão, que foi de 1,7 bilhão de reais. “Isso exige dos órgãos de controle do Estado uma apuração minuciosa e urgente”, observa.

“A venda da CEEE pelo governo Leite está fundamentada apenas na ideologia de que o Estado atrapalha e precisa ser retirado do maior número possível de funções”, afirma o vice-líder do Partido dos Trabalhadores na Assembleia Legislativa, Luiz Fernando Mainardi. O deputado esclarece que a CEEE-Distribuidora, o primeiro braço da empresa privatizado, tinha o monopólio para distribuição de energia elétrica em sua área de concessão. “Trata-se de um serviço de primeira necessidade. Neste caso, trocar o monopólio estatal pelo privado pode atingir em cheio a parcela mais pobre da população, justamente a mais necessitada.” Para ele, o setor privado está focado apenas no maior lucro possível, sem qualquer preocupação social. Além do mais, acrescenta Mainardi, a CEEE é uma empresa estratégica para qualquer governo que queira ter um projeto de desenvolvimento. “Mas, infelizmente, isso não é algo que está na cartilha do ex-governador.”

A oposição gaúcha concorda que Leite reuniu no Legislativo estadual apoio político suficiente para dar prosseguimento ao projeto privatista iniciado no governo de Antonio Britto, do MDB, ainda na era FHC, e que estava paralisado. O vice-líder petista insiste que, ao contrário do que apregoou o ex-governador, a CEEE era uma empresa lucrativa, o que fica demonstrado com a distribuição tardia de dividendos pela CPFL, após a privatização. “A venda da CEEE é um escândalo que, infelizmente, não foi devidamente divulgado pela mídia em seus pormenores.”

A controvérsia é justamente saber por que uma empresa que apresentava lucros foi vendida. Ou então, por qual motivo esses recursos não foram investidos no setor, para serem distribuídos apenas após a privatização. Em resposta a CartaCapital, a Secretaria de Comunicação do governo gaúcho informou que a decisão de privatização de uma empresa não se atém apenas a questões de lucros ou prejuízos. “Muito mais importante são as mudanças de gestão, a capacidade gerencial e financeira de seus controladores em aportarem recursos de acordo com o plano de negócios da companhia.” Quanto à distribuição de dividendos após a privatização e o seu não uso como investimentos na própria CEEE-T, a Secom esclareceu que “as decisões sobre retenções de lucros e planos de investimentos seguiram as regras societárias e regulatórias da companhia”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Negócio da China”

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