Cultura
Minha alma cheira a talco
Duas big techs, o Google e a Amazon, abraçam os dois principais projetos de celebração dos 80 anos de Gil


Criar meu website/Fazer minha homepage/Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada e um barco que veleje, cantava Gilberto Gil em Pela Internet, faixa do álbum Quanta, de 1997. Embora confesse pouca intimidade com artefatos tecnológicos, o cantor e compositor baiano foi, dentre os artistas de sua geração, o que melhor usou e apoiou os aparatos oferecidos pelo mundo virtual. E são, justamente, duas big techs que abrigam os grandes projetos voltados a celebrar os 80 anos do artista.
A plataforma Google Arts & Culture lançou, no dia 14 de junho, o museu digital O Ritmo de Gil, que tem a ambição de dar conta de toda a carreira do artista baiano que despontou para o sucesso nos anos 1960, com o Tropicalismo, foi ministro da Cultura do governo Lula, no início dos anos 2000, e que, em 2021, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
A Amazon Prime Video, por sua vez, estreia nesta sexta-feira 24 o reality Em Casa com os Gil, que mostra o dia-a-dia do compositor com a mulher, Flora, seus filhos e netos durante o retiro pandêmico, no interior do Rio de Janeiro.
“Fico feliz ao ver que as pessoas do mundo todo, especialmente os mais jovens, poderão ter acesso a conteúdo tão vasto sobre a minha trajetória”, disse Gil, na entrevista de lançamento do projeto do Google, realizada, de forma presencial, no Um Rooftop, espaço para eventos localizado na Avenida Francisco Morato, em São Paulo.
O cantor passará o dia do aniversário no palco, em um festival de jazz na Alemanha
Apesar de fisgado pela virtualidade, Gil escolheu passar o dia do aniversário, 26 de junho, no palco, com a alma cheirando a talco, e cercado por filhos, netos e colaboradores musicais. O artista é uma das atrações de um festival de jazz da cidade Timmendorfer Strand, na Alemanha. A turnê Gil & Family – Nós a Gente, inicialmente pensada para 2020, seguirá então por outros oitos países europeus – Reino Unido, França e Itália incluídos – e por Casablanca, no Marrocos, antes de chegar ao Brasil, em setembro.
Gil chega aos 80 em boa forma. Ao longo da bem-sucedida carreira, equilibrou álbuns de repertório autoral, homenagens aos ídolos e encontros com contemporâneos e discípulos musicais. Seu último álbum solo, OK OK OK, de 2018, trazia desde reflexões sobre os tempos vis que tomaram conta do país até comentários pessoais sobre seus problemas de saúde (o cantor havia sido internado dois anos antes, com hipertensão e insuficiência renal).
Uma de suas características foi a exploração dos mais variados estilos – do forró e baião à bossa nova, do rock ao reggae, do pop à disco music. “Gil sempre foi chegado a experimentações. No estúdio, é curioso, democrático, disposto a ouvir, flexível, pronto para correr riscos e ao mesmo tempo ser a locomotiva e mostrar o caminho”, diz Liminha, que produziu, entre outros, A Gente Precisa Ver o Luar (1981) e Banda Larga Cordel (2008). Sua hiperatividade sonora espalhou-se pela música brasileira.
Os Mutantes, por exemplo, se uniram a ele para tocar Domingo no Parque no festival da Record, em 1967, e os Paralamas do Sucesso se inspiraram na na afro-brasilidade de Refavela (1977) e Realce (1979) para criar seu combinado de música pop e reggae. Mais recentemente, Roberta Sá e BaianaSystem foram alguns dos que incorporaram Gil a seus repertórios.
E sua influência se estende para os herdeiros de carne e osso. A filha Preta é cantora e empresária e o filho Bem atua como guitarrista e produtor, além de participar do grupo do pai. O mais recente tronco musical da família é o trio Gilsons, formado por José Gil, seu filho, e pelos netos Francisco e João Gil.
Parabólicas. No reality Em Casa com os Gil, da Amazon Prime Video, o artista aparece rodeado pela família. O museu O Ritmo de Gil, do Google Arts, reúne registros antigos e até um disco inédito, em inglês – Imagem: Instituto Gilberto Gil e Amazon Prime Video
Pois é justamente sua família o mote de reality show produzido pela Amazon, com direção geral Andrucha Waddington, que contou com Gil na trilha sonora de Eu, Tu, Eles (2000) e filmou o cantor nos documentários Gilberto Gil: Tempo Rei (1996) e Viva São João (2002).
O programa, em cinco episódios, mostra festas e reuniões em família, nas quais política e racismo são temas muito presentes, e difere de outros do gênero, como The Osbournes (2002), em que a postura apatetada do patriarca – e pai do heavy metal – tinha mais destaque do que a música.
Embora traga momentos, digamos, embaraçosos da intimidade da família (há, por exemplo, um vaso sanitário entupido e discussões acaloradas sobre futebol), Em Casa com os Gil tem a música como norte.
Nas reuniões de família, os Gil palpitam sobre o repertório que será tocado na turnê internacional ou na festa de aniversário do patriarca. Um momento pungente é quando Gil, com sua musicalidade típica, tamborila o teclado de uma sanfona. Os executivos da Amazon, em entrevista dada semana passada, disseram que a série terá uma segunda temporada.
O projeto do Google tem uma natureza distinta. A jornalista Chris Fuscaldo, responsável pela curadoria do projeto, liderou uma equipe que selecionou as 41 mil imagens espalhadas por 140 seções, além de 900 vídeos e gravações históricas digitalizadas.
“Conseguimos reunir profissionais especializados. Sem bons pesquisadores com faro jornalístico, dificilmente teríamos encontrado o disco inédito ou flagrado sua reação ao receber a notícia de que havia sido eleito para a Academia Brasileira de Letras”, diz Chris.
O disco a que Chris se refere é uma jóia rara do vasto conjunto. Foi gravado em 1982, num estúdio em Nova York, em inglês, e havia sido dado como perdido pelo compositor.
“Minha voz estava novinha”, diz, sobre as gravações feitas nos EUA, nos anos 1980
As gravações foram descobertas em meio aos materiais guardados na Gegê Produções, empresa da família, numa fita K7 e num arquivo em formato DAT, com os nomes das faixas escritos à mão e datilografados. O jornalista e pesquisador Ricardo Schott foi quem identificou a raridade do material.
Produzido pelo percussionista Ralph MacDonald, o trabalho tem a participação de músicos estrelados como o baterista Steve Gadd, que já tocou com Eric Clapton, Paul Simon e James Taylor, o baixista Marcus Miller, que foi diretor musical de Miles Davis, e Roberta Flack, que faz um dueto com o tropicalista na canção Jump for Joy. “Minha voz estava novinha”, disse Gil, sobre o disco que, no passado, ele mesmo não achou bom o bastante para ser lançado.
Ao mesmo tempo que pluga Gil ao futuro, a tecnologia o reconecta com o passado. Na coletiva do Google, o cantor confirmou, inclusive, que o projeto de retorno dos Doces Bárbaros – grupo formado por ele, Caetano, Maria Bethânia e Gal nos anos 1970 – ainda é uma hipótese. “Bethânia é quem está mais entusiasmada com a ideia”, diz. “É possível, sim, que a gente queira e consiga se reunir de novo. Tomara que aconteça.”
Ao falar sobre o presente, o artista, embora estivesse divulgando aquilo que o Google considera a primeira mostra digital que abarca a totalidade de um acervo musical, não teve olhos só para si. “As novas ferramentas eletrônicas potencializaram mais esses meninos a fazerem o seu ofício”, afirma. “Vejo o trabalho de Anitta no sentido de utilização de todo o aparato tecnológico para desenvolver um perfil de atuação e estabelecer a concretização de um modo artístico de ser. E, finalmente, ela conseguiu. Hoje, isso está aberto a todas as Anittas do mundo.”
Não à toa, na nuvem de palavras usadas por Chris Fuscaldo para definir Gil, estão, além de “cultura, política, posicionamento”, “doçura e generosidade”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Minha alma cheira a talco”
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