Cultura

assine e leia

Uma viagem através da dor

Londres exibe 18 pinturas raras de Edvard Munch adquiridas, no século XIX, por um industrial norueguês

Uma viagem através da dor
Uma viagem através da dor
Mar e lua. Melancolia, produzida entre 1894 e 1896, faz parte da série O Friso da Vida. Em Casa ao Luar, de 1893, vê-se a sombra do pintor caída sobre o jardim - Imagem: KODE Art Museum
Apoie Siga-nos no

A exposição Edvard Munch: Masterpieces from Bergen (Obras-primas de Bergen), em cartaz na Courtauld Gallery, em Londres, até setembro, é uma revelação poderosa. E como poderia ser diferente, se a maioria das pinturas nunca foi vista fora da Noruega?

As obras expostas foram compradas no século XIX pelo industrial norueguês Rasmus Meyer, que possuía moinhos de grãos na cidade costeira de Bergen e decidiu que a população local deveria ter a mesma oportunidade de ver o maior artista vivo do país que qualquer morador da capital, Oslo. E lá permanecem os quadros desde então.

Bergen é uma cidade cercada por fiordes, de frente para as Ilhas Shetland, banhadas pelas águas frias do Mar do Norte. O que impressiona, no entanto, não é apenas o fato de essas pinturas serem desconhecidas, mas o quanto elas revelam, uma após a outra, mudanças súbitas, do dia para a noite, no percurso artístico de Munch (1863-1944).

Na criteriosa coleção de Meyer, vemos sua arte evoluindo em velocidade excepcional e com clareza incomum. São apenas 18 obras, abrangendo algumas décadas, dos anos 1880 até 1909. Mas cada uma delas é uma obra-prima de miserabilidade enérgica e teatral.

O colecionador desejava mostrar a produção do artista aos moradores da pequena Bergen

Exceto uma: uma pintura do início, deliberadamente posicionada na entrada como uma espécie de ponto de embarque. Dia de Primavera em Karl Johan, de 1890, mostra a rua principal de Oslo como se fosse pintada por outro artista, que tentasse produzir uma mistura vívida de Pissarro e Seurat. Nem um único traço se parece com um Munch.

No entanto, a mesma rua, retratada da extremidade oposta da exposição e feita apenas dois anos depois, é um pesadelo clássico de rostos esqueléticos com chapéus estranhos, caminhando apressados em nossa direção ao entardecer, com a luz do gás brilhando nas janelas distantes.

Nessa imagem, uma figura se destaca: uma silhueta negra na escuridão, o típico alter ego do artista. A pintura é, em geral, associada a um trecho do diário ilustrado de Munch, no qual ele se descreve como um solitário, apaixonado por uma mulher por quem procura em vão pelas ruas.

Em Casa ao Luar vemos sua sombra cair sobre o jardim escuro. É uma forma sinistra que quase toca os pés de uma mulher visível apenas como um longo avental branco. O restante dela está obscurecido pela tinta azul da meia-noite. O céu noturno é de um verde misterioso e arsênico. “Quando a lua está escondida por nuvens”, escreveu Munch, “ela fica tão sigilosa.” A sensação é de um caso amoroso condenado e ilícito.

Essa obra faz parte de um grupo de pinturas inspiradas na cidade litorânea de Åsgårdstrand, onde Munch tinha uma casa de veraneio. Aqui, o sol da meia-noite lança sua claridade pálida ao longo da costa, transformando o mar em cor derretida e criando ilusões sonhadoras.

Em Luar na Praia, de 1892, a praia e a floresta que a limita recuam acentuadamente na distância, convergindo para um ponto de fuga diretamente sob uma lua amarela (lembra-nos da geometria de O Grito). Penduradas abaixo dela, como um colar, estão mais quatro luas pálidas e brilhantes.

Autorretrato. Pintado após um colapso nervoso, o quadro de 1909 foi comprado por Rasmus Meyer no ano em que foi feito – Imagem: KODE Art Museum

As pinturas de Åsgårdstrand transpassam o olhar. Lá está a irmã de Munch, ­Inger, sentada entre rochas reluzentes na praia, com seu vestido branco incandescente ao entardecer. A pintura é saliente e espessa como um Rembrandt. Atrás de Inger, o mar flutua em marolas em tons lavanda, malva e índigo. A pintura nos cativa, e é feita para assombrar. A irmã do pintor parece mortalmente pálida em seu vestido lunar. Apresenta-se em uma forma tão nítida e primordial quanto as rochas.

A mesma costa serve de cenário para o célebre ciclo de pinturas conhecido como O Friso da Vida. Em Melancolia, um homem está sentado sozinho na areia escura, segurando a cabeça, pensativo e ansioso, enquanto a praia ondula em direção a uma vida em outro lugar.

Mulher em Três Estágios, ambientado na mesma linha atemporal, traz uma noiva virginal (possivelmente abandonada?), como uma das sedutoras nuas de Munch, com cabelos ruivos crepitantes e um rosto magro, cujos traços parecem devastados por drogas ou pela sífilis – doença que ele temia de forma obsessiva. Tudo o que a separa da presença espectral de um homem, alojado na extrema-direita da pintura como um esqueleto num armário, é uma pincelada de tinta vermelha escura.

A mostra é apresentada com espaços generosos entre as obras, e a cuidadosa iluminação dá aos olhos e à mente tempo suficiente para absorver a extraordinária técnica de Edvard Munch: as brilhantes pinceladas de pérola e prata, as espirais insistentes, as manchas penetrantes e as cabeças aureoladas.

A organização espacial evidencia os cortes sensacionais de Munch. Quando paramos na segunda galeria, as figuras parecem marchar em nossa direção, chegando assustadoramente perto de nós.

A exposição dá aos olhos e à mente tempo para absorver a extraordinária técnica de Munch

O mais estranho de tudo é ver a garota de olhos azuis que parece ter caminhado até o pintor – e até a borda do quadro. Atrás dela, três meninos estão deitados de bruços na rua de verão. Teriam os garotos a intimidado? Ela fica entre o homem e os meninos, desafiadora, insistentemente frontal e cortada pela cintura, lançando a eles um olhar acusador. Seus olhos azul-celeste são retratados sem pupilas. A cor intensa é quase enervante.

Em outras pinturas, os olhos são apenas pontos pretos penetrantes. Às vezes, não há nariz, sobrancelhas ou boca. Em Homem e Mulher, o rosto desviado da figura feminina é reduzido a um único olho ciclópico sob um inferno de cabelos ruivos.

Está tudo indo para o inferno. Ou não? A arte de Munch apresenta uma performance tão espetacular de angústia, isolamento e sofrimento humano que só nos resta desfrutar da exposição. A última pintura é um autorretrato de 1909, feito depois do tratamento de um colapso nervoso, após anos de embriaguez paranoica.

Trata-se de uma imagem eletrizante, com linhas em vermelho, violeta, cobalto e amarelo atravessando a tela. Entre elas, vemos, calmamente postado, ereto e composto, trajando um elegante terno com colete, o próprio Munch. Sua força de espírito e sua arte surgem, impassíveis, aos nossos olhos.

O fato de Meyer ter conseguido comprar o autorretrato diretamente de ­Munch, no ano em que foi feito, é uma prova do relacionamento que mantinham. Depois disso, no entanto, não houve mais compras. O colecionador morreu poucos anos mais tarde, durante a Primeira Guerra Mundial. Munch viveria ainda quase três décadas, tendo pintado até sua morte, em 1944, aos 80 anos. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma viagem através da dor”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo