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O pop empoderado

Uma nova geração de mulheres assina as letras e melodias das músicas mais ouvidas no Brasil

O pop empoderado
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Anitta tem dado projeção a algumas criadoras. Nos anos 1960, dona Ivone Lara tinha de agregar um coautor homem para emplacar sambas na Império Serrano - Imagem: Acervo Familiar/Itaú Cultural e Jamie McCarthy/Getty Images/AFP
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Jenni Mosello, Day Limns, ­Carol Biazin e Aísha são nomes pouco conhecidos do grande público. Carolzinha e bibi também. Mas elas têm escrito um novo capítulo na história do show biz nacional. As quatro primeiras ajudaram na criação de Anaconda, sucesso de Luísa Sonza, que ultrapassou 400 milhões de streams no Spotify e cujo clipe está em 40 milhões de visualizações no YouTube. bibi é autora de Não Perco o Meu Tempo e Desce pro Play (Pa Pa Pa), gravadas por Anitta, modelo de empoderamento para todas elas. Carolzinha criou Sem Filtro, do repertório de IZA.

A elas se somam outras jovens – ­Sabrina Lopes e King entre elas – que, nos anos recentes, têm composto para gêneros diversos, mas com uma característica comum: o ponto de vista feminino.

A figura da mulher compositora sempre esteve presente na cultura pop. A americana Carole King, por exemplo, pertenceu ao Brill Building, um conglomerado de autores que criou hits para cantores e grupos dos anos 1950 e 1960. No Brasil, essa linhagem tem representantes que vão desde Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran até o grupo das chamadas cantautoras, como Joyce Moreno, Sueli Costa e Fátima Guedes, que viveu o auge nas décadas de 1970 e 1980.

As meninas do pop empoderado também tendem a equilibrar a carreira de compositora com a de intérprete. Jenni lançou singles e, recentemente, trabalhou na trilha sonora do filme Me Tira da ­Mira. Day Limns e Sabrina Lopes lançaram singles e Carol Biazin, o álbum Beijo de Judas (ao vivo), com 17 canções. “Sou 50% compositora, 50% cantora e cada parte soma pro 100% artista!”, brinca Jenni.

As composições abarcam gêneros diversos, mas têm uma característica comum: o ponto de vista feminino

Aísha – que, assim como Day, surgiu no meio evangélico – teve participações esporádicas em trabalhos dos rappers KT Malone e Baco Exu do Blues e quer se lançar como artista solo. “Comecei no estudo da composição porque percebi que ninguém pode falar por mim”, diz ela. “Meu ponto de vista é único e particular.”

Embora algumas dessas artistas tenham ingressado no meio a partir de ­shows de calouros, caso de Jenni, que passou pelo X-Factor, da Band, e Day, ­ex-The Voice, da Globo, o principal celeiro do repertório do novo pop são os song camps, processos de criação que ­reúnem autores, produtores e intérpretes.

Esses encontros que, em geral, duram até três dias, podem tanto nascer da encomenda de determinados artistas e executivos quanto de forma independente – nesse caso, o resultado é oferecido a empresários e gravadoras. Segundo o empresário Tiê Castro, da Tag Music, especializada na elaboração e distribuição desse repertório, o projeto em comemoração aos 20 anos de carreira de Claudia Leitte tem 14 músicas saídas dos camps.

É comum também que o processo de criação seja disparado pelos produtores. Foi a partir de um convite de ­Marcelinho Ferraz, do selo Head Media, que Day ­Limns criou Não Perco o Meu Tempo, gravada por Anitta. Algumas encomendas são feitas pelas próprias artistas mulheres, que desejam cantar o que outras mulheres escrevem. “A Luísa Sonza dá um norte e, muitas vezes, traz um texto que pode se tornar uma nova canção”, diz Day.

Aísha (à esq.) começou na música evangélica e Jenni Mosello passou pelo programa X-Factor, da Band – Imagem: Redes sociais

O empoderamento, ainda que indiscutível, está longe de significar um caminho livre das pedras do machismo. “Já me interromperam para pedir para passar cafezinho, porque mulher faz café melhor; pediram pra dançar pra diretor de gravadora, porque assim me ouviria com mais carinho; já me alertaram pra não usar decote, porque pode distrair durante a session e tive minhas ideias ignoradas quando colocadas por mim e acatadas quando repetidas pelos homens da roda, e por aí vai”, lista Jenni.

O outro lado dessa moeda é que, segundo as compositoras, o novo pop feminino é marcado pela sororidade. “Nunca morei nesses rancores”, diz bibi. “Quero trazer mais mulheres para o jogo, criar pontes e fazer com que as pessoas não tenham medo de compartilhar conhecimento e conteúdo. Acho que nosso maior desafio é nos autovalorizarmos e fazer a indústria entender que tudo começa na composição.”

Tiê Castro faz questão de, invariavelmente, trazer uma mulher para liderar a mesa de compositores nos song camps. “Elas apontarão se determinada letra tem elementos machistas ou misóginos”, diz.

Sua homônima, Tiê, que, além de cantora e autora, é diretora da ­Abramus ­(Associação Brasileira de Música e ­Artes), ressalta a importância feminina no campo da composição. “Quando iniciei minha carreira, lutei para ser reconhecida tanto como cantora quanto como compositora. Hoje, acho maravilhoso ver essa quantidade de mulheres produzindo novas músicas. É um processo longo, e talvez só nossas filhas consigam desfrutar do resultado da nossa luta.”

Cabe salientar que, embora o feminismo sirva de pano de fundo ao trabalho, o sucesso tem muito mais a ver com o apelo popular de letras como Anaconda (Eu tenho um instinto selvagem/ Te marco feito tatuagem) do que com o engajamento em si.

“Talvez só nossas filhas consigam desfrutar do resultado da nossa luta”, diz Tiê

As criações de Day Limns, Aísha e ­Sabrina Lopes trafegam entre a nova soul music, o funk e o pop/rock. Jenni Mosello e bibi são mais ecléticas. Jenni criou os versos Me vi criança correndo da fome/ No ­país do homem que quis me roubar / Que quis me matar / Deixa meu pranto rolar/ E o choro do samba ecoar para a versão de Preciso me Encontrar, de Cartola e Candeia, gravada por Elza Soares. bibi criou temas para Zezé e Wanessa Camargo, Pedro Mariano e o grupo de pagode Atitude 67.

Apesar de estarem por trás de grandes sucessos, essas jovens compositoras permanecem longe de ter ganhos financeiros expressivos. Em geral, eles se resumem aos direitos autorais – que foram bem reduzidos no universo do streaming –, diárias por participação em processos de criação ou um pagamento pela exclusividade da música.

A “freguesia”, de toda forma, tem gostado e vem pedindo bis. E elas, por sua vez, parecem seguir a máxima da vez: ninguém larga a mão de ninguém. “Eu chamo a J­enni de mãe, porque ela me pega pela mão e vai me guiando pelo processo de composição”, diz Cleo (que tirou o sobrenome Pires para se lançar na carreira musical), sobre Jenni Mosello. “As nossas sessões têm liberdade, mas são repletas de aconchego.”

Essa possibilidade de união talvez seja uma das grandes novidades deste momento. Historicamente, as compositoras pareciam mais solitárias em seu enfrentamento do machismo. Dona Ivone Lara, autora de alguns dos maiores sambas da história, tinha de agregar um coautor homem para emplacar seus sambas de enredo na Império Serrano, na década de 1960.

O mercado sertanejo, conhecido reduto de autores do sexo masculino que, geralmente, criavam letras falando de mulheres ingratas e traidoras, manteve a misoginia até o início desta década. Embora Roberta Miranda e Paula Fernandes tenham conquistado seus espaços, foi apenas com a ascensão do “feminejo” de ­Marília Mendonça, Maiara & Maraísa e Paula Mattos, que a história começou a mudar de fato. “No começo da minha carreira, em Campo Grande, eu passava horas para ser atendida e mostrar as minhas composições”, diz Paula, hoje uma das autoras mais reconhecidas do mercado. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O pop empoderado “

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