Economia

assine e leia

Pelo fim do faroeste

ONG britânica denuncia à União Europeia violações aos direitos indígenas na cadeia produtiva do frango brasileiro

Pelo fim do faroeste
Pelo fim do faroeste
Imagem: Mário Vilela/Funai/Consea
Apoie Siga-nos no

A ONG britânica Earthsight – “Visão da Terra”, em tradução livre – apresentou à Comunidade Europeia uma denúncia de graves violações aos direitos humanos na cadeia produtiva do frango brasileiro. O caso envolve o uso de terras reivindicadas por povos indígenas para abastecer a agroindústria, fomentar negócios e multiplicar fortunas. O relatório Sangue Indígena, elaborado pela organização, relata a dramática situação vivenciada por uma comunidade Guarani Kaiowá no município de Juti, em Mato Grosso do Sul, a quase 10 mil quilômetros de distância da sede da entidade, em Londres. Expropriados durante a colonização do estado, eles viram seus territórios tradicionais tomados pela monocultura da soja, usada na fabricação da ração de frangos exportados para a Europa.

Os conflitos fundiários em Mato Grosso do Sul arrastam-se há décadas. Atual­mente, cerca de 55 mil indígenas, das ­etnias Nhandeva e Kaiowá, estão confinados em 32 áreas isoladas, que perfazem menos de 50 mil hectares – o rebanho bovino do estado tem mais espaço para pastar. A maior parte dessa população vive em aldeias superlotadas, demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio ainda nos anos 1920, sem condições mínimas para subsistir com o seu modo de vida tradicional. “Durante a colonização, o governo via aquele território como um gigantesco espaço desocupado”, comenta o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Universidade Federal da Grande Dourados. “A presença dos indígenas não tinha valor algum. As comunidades foram simplesmente ignoradas.”

No início do século XX, o governo doou à companhia Matte Larangeira milhões de hectares para exploração da erva-mate, incluindo os territórios habitados pelos Guarani. Em 1953, com os preços do produto em baixa, a empresa decidiu vender suas terras ali, mas antes era preciso expulsar os indígenas. O SPI e as forças policiais se encarregaram de removê-los à força e confiná-los em três pequenos territórios, Dourados, Amambai e ­Caarapó. Com o avanço da pecuária extensiva e das plantações de soja, as comunidades indígenas jamais conseguiram reaver as áreas tomadas. Além disso, com o crescimento populacional das aldeias, esses povos passaram a enfrentar surtos de desnutrição, alcoolismo e suicídios.

Cansada de esperar, uma comunidade Kaiowá liderou, em 1999, a “retomada” de uma área com cerca de 100 hectares, hoje a abrigar a fazenda Brasília do Sul. Esse é um dos casos denunciados pela Earthsight. Os donos da propriedade rural entraram com uma ação judicial, pleiteando a reintegração de posse, sob o argumento de que a fazenda foi comprada legalmente. Em 48 horas, a Justiça emitiu uma ordem de despejo. A comunidade resistiu à remoção e permaneceu. Em setembro do mesmo ano, uma nova ordem judicial determinou nova retirada. Mais uma vez houve resistência. Até que, em outubro de 2001, os índios foram despejados por determinação da Justiça Federal. As casas foram incendiadas e as plantações, destruídas. Lideranças foram algemadas e presas.

A Earthsight defende a proibição da compra de commodities associadas a terras em litígio com os povos originários

“Quando não somos pegos por pistoleiros, somos pegos pelos juízes”, lamenta Valdelice Veron, filha do líder Marco Veron, assassinado numa emboscada em janeiro de 2003, aos 73 anos. Até hoje ninguém foi condenado por sua morte. Há muitos anos, o Mato Grosso do Sul lidera o ranking de assassinatos de indígenas. Outro dado alarmante é o número de suicídios nas aldeias do estado. Segundo o Conselho Missionário Indigenista, ocorreram 800 casos em todo o Brasil, de 2014 a 2020. Um terço deles ocorreu no estado, vitimando sobretudo os Kaiowá.

O relatório da Earthsight revela como o frango importado pelos europeus contribui para a manutenção desse cenário. De acordo com a ONG, o abatedouro Lar Cooperativa Agroindustrial, o quarto maior do País, exportou mais de 115 mil toneladas de frango para a Europa­ de 2017 a 2021. Os principais destinos foram Alemanha, Reino Unido e Holanda. Com mais de 11 mil associados e 22 mil funcionários, a companhia compra quase um quinto da soja produzida em Mato Grosso do Sul e possui um complexo de processamento em Caarapó, município próximo à fazenda Brasília do Sul. A Lar utiliza soja para produzir ração animal. Um dos fornecedores, revela a Earthsight, é justamente a Brasília do Sul.

Nenhuma empresa consultada pela ONG britânica na Europa foi capaz de apresentar as medidas adotadas para evitar a compra de produtos associados a violações aos direitos humanos. Essas empresas, segundo o relatório, “não parecem preocupadas em adquirir produtos de frango de um exportador com ligações claras a uma fazenda implicada na supressão violenta de direitos indígenas”. No Brasil, a Lar Cooperativa jamais respondeu aos pedidos de esclarecimento da Earthsight. CartaCapital também encaminhou perguntas para a companhia, mas não teve retorno.

Além de denunciar os crimes cometidos contra as comunidades indígenas, a Earthsight pretende conscientizar os importadores europeus a aderir ao boicote de commodities e outros produtos que, em sua cadeia produtiva, não cumprem a legislação ambiental ou violem os direitos humanos. Chefe de Pesquisa de Desmatamento da entidade, o brasileiro Rubens Carvalho defende que os EUA e os principais mercados consumidores da União Europeia adotem medidas protetivas. Para tanto, sustenta, é necessário verificar não apenas a reputação do vendedor, mas também monitorar a sua cadeia de suprimentos, os seus fornecedores.

O papel dos mercados consumidores para a devastação ambiental foi evidenciado em diversas ocasiões. As importações em alto volume de madeira, soja, carne bovina e couro, entre outras commodities agrícolas, criam incentivos para a expansão do agronegócio nas florestas tropicais. Estes são, de longe, o principal motor do desmatamento global, responsável por em torno de 12% das emissões climáticas anuais. Igualmente importantes são, porém, os problemas decorrentes desse modelo predatório para as comunidades locais: apropriação de terras, corrupção e violência.

A proposta de um regulamento da Comissão Europeia, atualmente em discussão no Parlamento e no Conselho Europeu, é possivelmente a mais ambiciosa. Não apenas visa banir commodities e produtos derivados que tenham relação com o desmatamento ilegal, mas também aborda questões de sustentabilidade. “É urgente a aprovação de leis que também proíbam a importação de ­commodities relacionadas à violação dos direitos das comunidades locais e outras ilegalidades”, reforça Carvalho.

A Earthsight decidiu monitorar a cadeia industrial do frango porque o Brasil é o segundo maior produtor mundial e lidera as exportações desse bem. Desde setembro de 2021, o País negocia o aumento das cotas de exportação para o Reino Unido. As importações britânicas de frango brasileiro, resfriado ou congelado, aumentaram 70% nos últimos cinco anos. Em janeiro de 2022, a UE aumentou as importações de frango brasileiro em 53,5%, na comparação com o mesmo mês do ano passado. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pelo fim do faroeste”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo