Economia
Olha a banana!
A Petrobras entrega usina de xisto a grupo canadense suspeito de espionagem industrial por pouco mais da metade de seu lucro em 2021


Em 2019, o Supremo Tribunal Federal liberou a venda de subsidiárias de estatais sem aval do Congresso. A decisão abriu a porteira para o desmonte da Petrobras, com a venda da BR Distribuidora, da transportadora de gás TAG e das refinarias antes controladas pela petroleira, com dano real e imediato à população. A privatização da TAG é exemplar da lógica do processo, por implicar o aumento das despesas de aluguel da Petrobras para contratação dos mesmos serviços de transporte de gás antes prestados pela agora ex-controlada. Em nove anos, a petroleira devolverá, com pagamento de aluguel, tudo o que recebeu pela venda da TAG, no total líquido de 27,9 bilhões de reais, como revelou CartaCapital em abril deste ano. Agora, temos um novo capítulo da privataria em curso.
No Paraná, o grupo canadense Forbes & Manhattan Resources Inc. é acusado de receber informações privilegiadas em meio às negociações para comprar a Unidade de Industrialização do Xisto, a SIX, situada no município de São Mateus do Sul. O compromisso entre as partes foi assinado em novembro de 2021. Agora, aguarda a aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e da Agência Nacional do Petróleo. A Associação Nacional dos Petroleiros Acionistas Minoritários da Petrobras (Anapetro) pretende, porém, barrar o negócio na Justiça.
O interesse canadense é antigo. O primeiro contato aconteceu em 2007, quando a Petrobras buscava mercado para incrementar o processo Petrosix, por ela desenvolvido e patenteado para extração de xisto, camada de rocha sedimentar da qual é possível extrair um óleo com características similares ao petróleo. Buscava-se um acordo com o governo da Jordânia, que não prosperou. Cinco anos mais tarde, em 2012, a F&M propôs uma parceria – joint venture – com a estatal para internacionalizar a tecnologia.
A tecnologia brasileira está entre as mais modernas do mundo. Reduz os danos ambientais gerados pela lavra convencional do xisto por meio de um método conhecido como fracking, ou fraturamento hidráulico. Nos países desenvolvidos que abrem poços para essa modalidade, como Canadá e EUA, tornou-se comum a devastação de paisagens inteiras e a contaminação de enormes porções de lençóis freáticos, a ameaçar a agricultura e, por vezes, o consumo de água.
A Anapetro acusa a Forbes & Manhattan de receber informações privilegiadas e busca anular na Justiça a venda da SIX
A controvérsia em torno do fraturamento hidráulico levou à proibição do método na França, na Bulgária e no próprio estado do Paraná. A procura dos investidores estrangeiros surgiu exatamente pelo fato de este processo ser menos prejudicial que o modelo até então adotado. Foi uma das primeiras ofensivas da Forbes & Manhattan para lucrar no mercado de ações por meio da Petrosix e do potencial de rentabilidade dos recursos da Formação de Irati, área geológica rica em xisto que se estende nas regiões Sul e Sudeste do Brasil e nos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul.
No Brasil, o grupo canadense criou a subsidiária Irati Energia, com capital aberto na Bolsa de Toronto, visando a exploração do xisto brasileiro. A parceria prevista entre Petrobras e F&M também não prosperou, mas os gringos passaram a contratar engenheiros aposentados da Six que atuaram no desenvolvimento e pesquisa do processo Petrosix. No quadro de colaboradores da Irati Energia figuravam João Carlos Winck, João Carlos Gobbo, Celio Paulo Susin, já falecido, e Jorge Hardt Filho, todos ex-empregados da estatal. A missão dos engenheiros era conseguir registrar a patente do processo Petrosix que o grupo tentava negociar junto à Petrobras há algum tempo, mas não conseguia.
O e-mail de Winck contou como contato oficial no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral da Irati Petróleo e Energia Ltda. Consultado por CartaCapital sobre sua função na empresa, o engenheiro foi lacônico na resposta: “Não tenho mais relação alguma com a Irati”. Quando prestou serviços de consultoria à Six, Hardt Filho foi autorizado pelo então gerente de Engenharia de Negócios, Hélio Toshio Sakurai, a ter acesso ao sistema de informações da Petrobras a partir de seu laptop.
No negócio, a Petrobras desprezou a capacidade de produção de insumos agrícolas de sua usina – Imagem: Arquivo Sistema CNA/Senar
“Causa estranheza essa medida”, observa o presidente da Anapetro, Mario Alberto Dal Zot. “A Petrobras sempre foi extremamente rigorosa nestas questões. Autorizar um não funcionário a acessar informações de pesquisas de seu equipamento pessoal é algo incomum.” Teria Hardt obtido informações privilegiadas? CartaCapital enviou questionamentos por e-mail sobre sua função na Irati Energia e os motivos do acesso aos dados da Petrobras, mas não recebeu retorno até a conclusão desta reportagem.
A nebulosa transação tem ainda as digitais da Engevix Engenharia, empresa parceira da Petrobras e da Forbes & Manhattan nos projetos de internacionalização do Processo Petrosix na Jordânia, no Marrocos e no estado de Utah, nos EUA. De acordo com a Anapetro, nos slides e materiais de apresentação da empresa era possível encontrar cópias de documentos sigilosos da Petrobras, inclusive com a logomarca, além de dados internos “provavelmente vazados por meio do contrato de cooperação entre a Engevix e a Petrobras”. Curiosamente, Sakurai, o gerente que autorizou o acesso privilegiado a Hardt, após se aposentar não ficou desempregado. Foi contratado pela própria Engevix como consultor.
Em 2008, um documento interno da Petrobras já demonstrava apreensão com o sigilo das informações do processo Petrosix. A preocupação aumentou quando o Ministério de Minas e Energia alertou que a Forbes & Manhattan havia solicitado autorização para realizar estudos em reservas de xisto que se encontravam exatamente na continuidade da mina pertencente à Petrobras. À época, nos EUA, os canadenses distribuíam panfletos e materiais de divulgação afirmando possuir a tecnologia PRIX, à imagem e semelhança do processo Petrosix. Em agosto de 2013, o quarteto de engenheiros representantes da Irati Energia registrou a patente no Brasil. Segundo a Anapetro, “com pequenas modificações do projeto original desenvolvido pela Petrobras”. A mesma patente foi registrada na Europa.
Após investir 20 milhões de dólares em pesquisas de fertilizantes na SIX, a Petrobras vendeu a empresa por 33 milhões
A gestão da SIX em São Mateus do Sul encaminhou as denúncias à Petrobras. O assunto chegou até a diretoria da petroleira e a uma comissão interna de auditoria tratou de apurar o fato. Por decisão da presidência da estatal, foi emitida uma recomendação que proibia qualquer transação com o Grupo F&M, inclusive fazendo constar no relatório que “a Comissão entende também como desaconselháveis futuros contratos com a empresa F&M e qualquer outra a ela vinculada direta ou indiretamente”.
O modus operandi da Forbes & Manhattan no mercado foi introduzido pelo seu fundador, Stan Bharti, nascido na Índia e radicado no Canadá. Durante um evento organizado em 2010 pelo seu banco – na verdade, o fundo de investimentos Forbes & Manhattan –, Bharti destacou as estratégias de suas empresas para superar os desafios políticos e regulatórios nos diversos países onde atua. “Para minimizar os riscos, nós fazemos duas coisas. Sempre temos uma forte presença local. Pessoas locais, oficiais locais, conexões locais”, disse na ocasião. “Também nos certificamos de manter algumas boas conexões no meio político.”
Nesse ponto, o investidor não mediu esforços. Além de um ex-chanceler canadense, Pierre Pettigrew, o conselho consultivo do grupo é formado por cinco ex-oficiais de alta patente das Forças Armadas do Canadá, dos EUA e do Reino Unido. Na América do Sul, o indiano destacou Peter Boot, holandês que trabalhou para a empresa entre 2010 e 2016 e foi citado em um relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União, a investigar irregularidades em contratações, “como um importante elo para as atividades do banco no continente”. No quadro de executivos da Irati Energy figura William Clarke, ex-embaixador do Canadá no Brasil.
Além das tentativas de burlar a patente, a atuação do Grupo F&M nas minas de xisto foi melhor que a encomenda. A proposta de formação de uma joint venture resultou em um contrato de compra e venda acordado em novembro de 2021. Nele, a Petrobras alienou todo o controle da unidade de São Mateus do Sul para o grupo canadense por uma quantia abaixo do valor de mercado, sem contar o abatimento pela metade da alíquota de royalties a ser paga para o estado e os municípios afetados pela lavra do xisto, fruto de acordo firmado no ano passado entre a ANP e a estatal.
“Houve dano ao erário“, afirma Zot, da Anapetro – Imagem: Pedro Oliveira/ALEP
As negociações são um presente de pai para filho. Após anos de disputa judicial pelo pagamento de royalties na região, a Petrobras, como ato preparatório para a venda da unidade, concordou em pagar a alíquota de 10%, desembolsando 559 milhões de reais em encargos retroativos. A boa notícia para os canadenses é que assumirão as operações da SIX em definitivo pagando apenas 5% de alíquota dos royalties. Uma redução de 50%. Pela transação, a Petrobras receberá 33 milhões de dólares, cerca de 166 milhões de reais na cotação atual. Em 2021, o lucro da Unidade de Xisto de São Mateus do Sul foi de quase 300 milhões de reais. Ou seja, com 55% do resultado financeiro de apenas um ano a empresa estaria paga.
O contrato prevê ainda o futuro arrendamento do parque tecnológico, ou seja, a Petrobras poderá vir a pagar pelo uso dos laboratórios que ela implantou e investiu desde os anos 1970. A diretoria da Petrobras desconsiderou ainda, no valor da venda, a capacidade da produção de insumos agrícolas na unidade. De 2002 a 2015, foram investidos cerca de 20 milhões de dólares em pesquisas no projeto Xisto Agrícola, realizado em parceria com a Embrapa e o Instituto Agronômico do Paraná, o Iapar. Este valor corresponde a 60% do total recebido pela venda, de 33 milhões.
Com base na Lei de Acesso à Informação, a Anapetro questionou o TCU sobre o histórico da relação entre as empresas, as providências tomadas nas investigações de irregularidades, o não cumprimento das recomendações estabelecidas pela Petrobras, além de requisitar o acesso à íntegra dos documentos comprobatórios. Requereu ainda uma investigação do TCU a respeito dos procedimentos relacionados à Forbes & Manhattan e a Petrobras, bem como “sejam disponibilizadas eventuais recomendações e decisões sobre a contratação envolvendo a F&M e a Petrobras”.
Para Zot, da Anapetro, há elementos suficientes para barrar a privatização da usina de xisto. “Vamos buscar a anulação da venda da SIX via ações judicias e também em denúncias junto à Comissão de Valores Mobiliários e ao TCU, por conta de vários privilégios que a Forbes & Manhattan obteve na aquisição da unidade e do prejuízo que esta transação representa ao erário.” Procurada por CartaCapital, a Irati Energia, subsidiária da F&M, não deu retorno até a conclusão desta reportagem. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Olha a banana! “
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