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Fome para todos

Há risco de uma catástrofe planetária, alerta a ONU. O Brasil havia equacionado o problema, e agora está ameaçado

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Monocultura. Há 84,8 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Dos 72 milhões de hectares de lavouras, 31 milhões são de soja - Imagem: Christiano Antonucci/GOVMT e Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar
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O alerta recente das Nações Unidas para um novo recorde nos níveis mundiais de fome e o alto número de pessoas em insegurança alimentar severa, pouco depois do anúncio de um plano do G-7 para enfrentar o problema, expõe tanto os malefícios da globalização quanto os extremos da condição paradoxal do Brasil, terceiro maior produtor de alimentos do mundo e, ao mesmo tempo, assombrado pela fome. Segundo a ONU, os preços dos alimentos no mundo são os mais caros em 61 anos, o total de famélicos subiu 500% desde 2016 e o número de habitantes nessa situação passou de 135 milhões, antes da pandemia, para 276 milhões.

Vários países estão à beira de uma crise gigante, caso de Sri Lanka, Marrocos, ­Paquistão e Líbano, entre outros, destacou em apresentação na Câmara dos Deputados a economista Jayati Ghosh, professora da Universidade de ­Massachusetts. O aumento do preço de alguns alimentos em até 300% no Irã provocou protestos em massa e incêndios de lojas.

Em nota técnica de janeiro, o Ipea chamou atenção para o agravamento do estado de insegurança alimentar no campo e na cidade. “Vista na perspectiva histórica, com dados da Pnad e da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, a trajetória da segurança alimentar no País­ está em claro e preocupante retrocesso”, sublinhou o Ipea. Hoje, há 84,8 milhões de brasileiros com algum grau de insegurança alimentar, o equivalente a 36,7% de todas as famílias. Cerca de 10,3 milhões de pessoas no Brasil padecem de insegurança alimentar grave e passam fome. A onda de frio intenso no País afetou plantações, tende a exacerbar a inflação e agravar ainda mais o problema de acesso a alimentos, alertam especialistas. A inflação de alimentos oscilou em torno de 12% nos últimos 12 meses.

Explodiu a “bomba” financeira, militar, ecológica e social construída pelo G-7

O resultado devastador da combinação de economia mundial instável, pandemia, problemas de transporte de insumos e mercadorias, guerra na Ucrânia, inflação em alta e crise climática concretiza a previsão dos economistas Hervé ­Hannoun e Peter Dittus, ex-executivos do Bank for International Settlements. Em 2018, eles disseram que a “bomba de tudo” – financeira, militar, ecológica e social –, construída pelo G-7, estava pronta para estourar. “Vamos admitir, os países do G-7 mostraram que não são líderes do mundo, são líderes de países ricos e são líderes de países específicos que buscam seus interesses nacionais e não estão efetivamente preocupados em estabilizar ou enriquecer o resto do mundo”, ressaltou Ghosh. Isso ficou evidente, acrescentou, na questão da distribuição das vacinas e de controle de direitos e propriedade intelectual.

As mudanças climáticas são uma das causas da crise de suprimentos e de preços dos alimentos, detalhou a revista The Economist na reportagem de capa intitulada “A próxima catástrofe alimentar”. Na China, maior produtora mundial de trigo, depois que as chuvas atrasaram o plantio no ano passado, a safra pode ser a pior de todos os tempos. Além das temperaturas extremas na Índia, segunda maior exportadora, a falta de chuva ameaça minar a produção de outros celeiros, desde o cinturão de trigo dos Estados Unidos até a região de Beauce, na França. O Chifre da África está sendo devastado por sua pior seca em quatro décadas.

“A comoção com a guerra da Ucrânia atrai as atenções, mas a situação da fome vinha se agravando há anos. Com a ­Covid, piorou e em 2021 houve também um ­aumento significativo do número de pessoas em situação de fome e vulnerabilidade”, sublinha Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero. Durante a pandemia, a ONU havia reconhecido que não conseguiria atingir as metas do desenvolvimento sustentável, inclusive o objetivo número 2, que fala em erradicar a fome em 2030, uma ficção. “Agora, com a guerra, houve um agravamento, é a tempestade perfeita.”

Os abalos acentuados pela guerra mostram “o fracasso da globalização, da ideia de que seria possível, perfeitamente, através do mundo sem barreiras, alimentar as populações e resolver todas as mazelas rapidamente com a livre circulação das mercadorias”. Isso não aconteceu. Ao contrário, há um retrocesso, imposição de barreiras, boicote à Rússia e retenção de vendas ao exterior por países exportadores.

A tempestade perfeita inclui uma crise no sistema alimentar que deveria levar a uma revisão do paradigma de consumo. “A maior parte dos países, exceto os desérticos, tem autossuficiência em alimentos, mas com o canto da sereia da globalização, muitos deixaram de produzir porque importar saía mais barato, era mais conveniente”, destaca o economista.

Desespero. A inflação causou protestos no Irã. A onda de frio fora de época pode elevar ainda o preço dos alimentos, que tiveram alta de 12% em um ano no Brasil – Imagem: iStockphoto

“O que quero sublinhar”, prossegue Belik, “é, primeiro, essa concentração enorme que houve no comércio internacional e nos produtos que estão sendo transacionados. Isso tem a ver com uma homogeneização da dieta mundial em torno de quatro produtos, o trigo, o milho, o arroz e a soja, que representam 60% dos grãos. Parte deles, principalmente a soja e o milho, não é usada para consumo humano final, mas como insumo.” Essa moldagem do sistema alimentar, emenda, está se mostrando frágil diante da situação de crise, em que os países tentam salvaguardar os seus interesses individuais, particulares. Desde o início da guerra na Ucrânia, 23 países impuseram restrições às exportações de alimentos que cobrem 10% das calorias comercializadas globalmente. No Brasil, o governo anunciou nova redução de 10%, a segunda desde novembro, no imposto de importação sobre feijão, carne, arroz e alguns alimentos industrializados, entre outros produtos.

Os países, inclusive o Brasil, deixaram de ter estoques reguladores. O governo considera a medida desnecessária e acredita que, diante de um problema com o abastecimento interno, sempre pode comprar no mercado internacional, uma tese demolida com a pandemia e a guerra. A crise múltipla atinge o País em situação de grande risco, devido ao desmonte completo das estruturas de proteção social para as pessoas vulneráveis. Todos os programas foram extintos ou esvaziados, desidratados, no sentido de inexistência de recursos. “Se o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome nos anos 2010, foi por conta dessa rede de proteção social que acolheu e identificou vulnerabilidades e deu um tratamento diferenciado para cada assunto em particular. Isso você não substitui por um Auxílio Brasil. Não é com um programa bala de prata, em que você faz uma transferência de renda malfeita e eleitoreira, que vai resolver o problema das pessoas.”

Há uma oportunidade agora, pondera Belik, de se repensar esse modelo de abastecimento alimentar, para uma volta à ideia de soberania alimentar, de os paí­ses poderem produzir os alimentos que têm a ver com a sua cultura e as suas condições climáticas. Essa revisão é mais que necessária, sugerem os dados da pesquisa intitulada “Um retrato do sistema alimentar brasileiro e suas contradições”, realizada pelo economista em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola e o apoio do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Clima e Sociedade, o primeiro estudo abrangente da cadeia de alimentos no País.

Não é o Auxílio Brasil, programa equivocado e eleitoreiro, que vai resolver o problema

Segundo a pesquisa, as famílias da faixa de renda mais alta, pesquisada pelo IBGE, acima de 25 salários mínimos, gastam com alimentação 627% a mais do que as famílias pobres. Cerca de 29% dessas famílias ricas concentram 46% das despesas em alimentação. São 18 milhões de famílias, ou 57 milhões de pessoas, que consomem 46% de todos os alimentos.  “Diante desse quadro, é fácil imaginar em quem uma indústria de alimentos, um supermercado, vai mirar nas ­suas estratégias de marketing e nas suas decisões. Temos aí um alimento, um produto, que é padronizado para rendas altíssimas, e que está muito além das possibilidades de consumo dos demais 71% das famílias”, diz o trabalho.

Em torno de 35% do gasto em alimentação está concentrado em 10% dos grupos de produtos, uma homogeneização que, em um país continental, reprime as manifestações de produção local e dietas locais, circuitos curtos, que são muito mais sustentáveis do que o padrão homogêneo em que o Brasil inteiro tem de se adaptar a um determinado padrão de consumo. A homogeneização corresponde a um direcionamento do sistema produtivo para o mercado externo. Como mostra o estudo, apenas 10% da produção de alimentos no Brasil, em todas as cadeias, com exceção das de suco de laranja e de soja, vai para o mercado doméstico.

Há uma “carnificação” da alimentação. O País tem 200 milhões de hectares com pastagens, sendo 130 milhões de hectares de pastagens degradadas, com produtividade baixa. Há 72 milhões de hectares de lavouras, temporárias e permanentes, sendo 31 milhões de plantio de soja, aproximadamente, 45%. O rebanho brasileiro é formado por 230 milhões de cabeças de gado, ou seja, há cerca de um boi por brasileiro.

“Alguns dizem que não dá para alimentar o mundo com a pequena produção, a agricultura familiar, e que a grande produção e as grandes fazendas são indispensáveis. Não é verdade”, contesta Belik. As grandes fazendas, que exigem enormes quantidades de fertilizantes, são parte de um modelo de consumo que está levando a grandes escalas de produção. “É preciso repensar o sistema como um todo.”

As perspectivas para o Brasil são preocupantes. O enfrentamento de pressões inflacionárias e do risco de fuga de capitais, a administração das taxas de juro e de câmbio e o próprio desenvolvimento são afetados pela posição subordinada do real na hierarquia monetária internacional, mostram Bruno De Conti e coautores de trabalho sobre o tema. Essa limitação fica ainda mais evidente neste momento em que o mercado antecipa a subida dos juros nos EUA, feita na tentativa de controlar a inflação causada por um choque de oferta por meio da alta dos juros, o que deve derrubar a economia. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fome para todos”

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