Economia
Minha parte em dinheiro
Pandemia e inflação impulsionam o benefício do cashback, que contamina até os bancos


De Jandira, cidade de 125 mil habitantes no oeste da Região Metropolitana de São Paulo, para o resto do Brasil. Um provedor local de internet, a Digenet, procurava um meio de animar o comércio, que, fechado pela pandemia, deixava de pagar o provedor. Ele procurou a empresa de marketing digital Glaper, que organizou um sorteio de cupons de desconto entre os clientes cadastrados. “Um usuário, por exemplo, ganhava um cupom de 100 reais e gastava numa padaria”, conta Felipe Delipe, sócio-fundador da Glaper. “Com isso, a provedora ajudava o usuário e ajudava a padaria. Mas era meio manual, ficou um pouco bagunçado. Comércios que não eram sorteados brigavam para participar. Daí, sugeri montarmos uma plataforma de cashback, que começou a funcionar em agosto de 2020.”
Hoje, a plataforma tem 5 mil estabelecimentos comerciais e 300 mil consumidores cadastrados, espalhados do Nordeste ao Rio Grande do Sul. Está em negociação com um provedor de internet do Nordeste que agrega 100 mil assinantes e 800 estabelecimentos comerciais, além de várias outras tratativas, facilitadas pela participação em uma feira em Olinda. “Se continuar no ritmo de crescimento atual, fechamos o ano com 10 mil estabelecimentos e cerca de 1 milhão de usuários beneficiados”, anima-se Delipe.
A febre do cashback, que significa “dinheiro de volta”, começou há mais de dez anos e viralizou na pandemia, com a explosão do comércio eletrônico. Levantamento da plataforma Cuponomia, criada em 2011, mostra que o benefício rendeu para o e-commerce cerca de 6 bilhões em 2020 e de 10 bilhões em 2021 (crescimento de mais de 60%), gerando um total de economia nas compras em lojas online de 80 milhões de reais. Sozinho, o Cuponomia foi responsável por movimentar mais de 1,3 bilhão de reais em vendas de e-commerce em 2021, crescimento de 200% sobre 2020. “A pandemia fez o e-commerce crescer e puxou o cashback. Quem usa conta para os amigos, o que gera um crescimento exponencial”, diz Ivan Zeredo, diretor de marketing da plataforma. “O impacto financeiro causado pela pandemia acabou, inclusive, servindo de motivo para que os consumidores usassem a criatividade para salvar cada real, a procurar formas mais vantajosas de continuar comprando.”
Rafael Humberto, do aplicativo Beblue, de Ribeirão Preto, confirma: “Com o cashback, o brasileiro consegue ampliar o poder de compra diante da inflação e isso o ajuda a equilibrar as finanças pessoais, visto que a porcentagem de retorno de algum produto ou serviço significa dinheiro extra para usar em outras despesas”. Entre os mais de 21 mil parceiros comerciais do aplicativo que oferecem o benefício, o consumidor pode utilizar o cashback quando abastece o seu veículo, refeições por delivery, eletrodomésticos ou vestuário. Em seis anos de operação, a Beblue processou, aproximadamente, 2,5 bilhões de reais em vendas que geraram cashback. Desse montante, foram devolvidos 70 milhões de reais para uma base de 3 milhões de usuários.
No ano passado, a vantagem gerou cerca de 10 bilhões de reais ao comércio
A popularização desse fermento nas vendas nos últimos dois anos tornou-se um argumento forte para campanhas promocionais do varejo, uma vez que produtos com esse benefício têm uma conversão maior que a média e clientes que recebem dinheiro de volta compram várias vezes, segundo o diretor de marketing do Magazine Luiza, Bernardo Leão. Nessa lógica, o Magalu lançou duas promoções no ano passado: primeiro, o Cashback do Milhão, com sorteios de prêmios de 100 mil reais entre setembro e dezembro e um único prêmio de 1 milhão de reais em dinheiro de volta para quem comprasse no varejista. Depois, um cartão de crédito gratuito, sem anuidade e com cashback nas compras no Magalu, com crédito no sistema de pagamentos da loja, o MagaluPay.
O benefício chegou até a Bolsa: em novembro de 2020, a fintech Méliuz, tida como a maior plataforma de cashback e cupons de desconto do País, fez sua oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês), amealhando 750 milhões de reais, sendo avaliada, hoje, em 1,4 bilhão de reais, e se aventurou no exterior, comprando, em fevereiro, a plataforma polonesa de comércio eletrônico internacional Picodi, que opera em 44 países. O balancete do primeiro trimestre mostra uma despesa com cashback de 53 milhões de reais nesse período, 21% inferior aos 67,5 milhões do quarto trimestre, muito mais movimentado por conta da Black Friday.
Abraçado pelas fintechs e pelos bancos digitais, como o Nubank e o Inter, o sistema contaminou até os conglomerados bancários, como Itaú, Santander e Bradesco, cujo presidente, Octavio de Lazari Junior, comentou, numa entrevista um ano atrás, que o conglomerado da Cidade de Deus planejava usar o cashback porque o cliente “tangibiliza esse benefício”.
Este é o ponto. “O cashback empodera o consumidor, que pode escolher como gastar. É essa sensação que faz o brasileiro cada vez mais gostar e procurar o cashback”, argumenta Humberto. Nem sempre, diz ele, o consumidor quer duas unidades de um mesmo produto, como muitas promoções oferecem, enquanto o desconto incentiva compras por impulso, sem necessariamente promover a recorrência e a fidelização do cliente, além da percepção de diminuição do valor. “No começo, é difícil o cliente entender o que é cashback, de ele se convencer a usar a recompensa”, enfatiza Zeredo. “Mas, depois que utiliza a primeira vez, aí ele usa sempre, por causa da facilidade de comprar e a liquidez de receber de volta os valores. A facilidade está no fato de o usuário ver o desconto porcentual que vai ganhar naquela compra em tempo real. E a liquidez, pois é possível utilizar o cashback da forma como quiser”, destaca o diretor da Cuponomia. Delipe acrescenta que, no mercado de provedores locais de internet, usar o cashback pode resultar em ter esse serviço praticamente de graça. “Se o usuário paga 100 reais por mês para ter internet banda larga na casa dele e usar o cashback nos comércios, com 5 reais daqui, 15 reais dali, pode chegar aos 100 reais que usou por mês.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Minha parte em dinheiro”
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